Os contos de fadas como construção da identidade de uma nação

Atualizado em 24 de janeiro de 2023, às 10h25

Desde que o ser humano começou a se organizar em sociedade, a troca de informações se tornou fundamental. As histórias se apresentam como importantes ferramentas, seja para explicar questões do dia a dia, como fenômenos da natureza, seja para tentar dar sentido à vida. Era preciso saber se comunicar e passar o conhecimento adiante, em prol da sobrevivência. Com a comunicação, nasce a necessidade de símbolos e metáforas para explicar o mundo. E, assim como a humanidade, as narrativas se desenvolveram e evoluíram.

Segundo Ana Lúcia Merege, em seu prefácio nos Contos de Fadas em suas versões originais, "à medida em que as civilizações se desenvolveram, as narrativas se tornaram mais complexas, e logo surgiriam os cânticos e poemas sagrados que estão nas raízes de toda a Literatura".

As origens dos contos de fadas

Apesar de terem sido registrados de forma escrita entre os séculos XVII e XVIII, alguns contos de fadas são tão antigos que remontam à Idade do Bronze, por volta de 5 mil anos atrás. Os contos de fadas surgiram como narrativas acessíveis e fáceis de serem transmitidas por meio da tradição oral, de geração em geração.

A palavra "fada" – derivada de "fata" e variante de "fatum" ("destino", em latim) – é uma herança da Antiguidade Clássica. Chamamos estas narrativas de contos de fadas por terem sua origem na cultura céltico-bretã que tem a figura da fada, símbolo da natureza sobrenatural da mulher, como parte do folclore.

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Os contos de fadas são excelentes referências e fontes para entendermos como o ser humano busca conhecimento de seu lugar no mundo por meio de abstrações e narrativas. Apesar de, hoje, serem relacionados à Literatura Infantil, eles nem sempre foram do jeito que conhecemos. O próprio conceito de infância como entendemos hoje é algo relativamente recente, o que fazia com que essas narrativas, muitas vezes, descrevessem cenas explícitas de violência e conteúdo adulto.

John Bauer, ilustração de conto de fadas nórdico, a princesa Tuvstarr.

Os contos de fadas foram sofrendo influências de povos das mais diversas partes do mundo, principalmente por meio de trocas culturais e comerciais. A racionalidade do Iluminismo levou os contos de fadas ao esquecimento, e eles só seriam resgatados novamente por meio de acadêmicos e estudiosos dos folclores locais e a da Linguística.

De acordo com Lícia Dalcin, em seu prefácio para Os Melhores Contos de Fadas Nórdicos, seria no Romantismo que os contos de fadas veriam seu resgate. O movimento trouxe ao mundo das artes o anseio pelo poder subjetivo, que engloba memória, saudade, família e uma liberdade estética que, acreditavam, só a cultura poderia proporcionar.

O surgimento das nações e o resgate dos contos de fadas

As nações, principalmente as europeias, foram estabelecidas no final do século XVIII, por causa da divisão do espaço geográfico fomentada pela revolução industrial, a comercialização e um crescente sentimento de patriotismo.

Anteriormente, entendia-se que uma nação era formada pelo conjunto de características culturais, tradições, língua, costumes, dentre outros fatores, que constituem uma identidade com a qual uma sociedade se identifica como pertencente. Entretanto, o conceito e definição de "nação" atualmente são questionados levando em conta características históricas, políticas e sociais.

Daniella S. Dias, no texto "O que vem a ser Nação no contexto atual?" reflete sobre como essa definição mudou com o tempo. "Percebe-se que o conceito de Nação, por albergar inúmeros fatores objetivos e subjetivos, mantém-se nebuloso, pois não somente fatores étnicos, históricos, políticos, culturais, éticos e econômicos são suficientes para defini-lo. Pode-se afirmar que a solidariedade entre semelhantes e o interesse de viver em comunidade em razão de desejos, valores e costumes comuns possibilitam a comunhão de ideias, sonhos e aspirações; no entanto, esses valores e a unidade étnica e social são insuficientes para a definição do conceito de Nação". Inúmeros autores e acadêmicos vêm tentando definir o que, atualmente, seria entendido como "nação".

Naquela época, pensando no papel dos contos de fadas como parte da construção de uma identidade de um grupo de indivíduos em determinado período de tempo, a língua foi um dos principais responsáveis pelo sentimento de pertencimento. As tradições orais, incluindo os contos de fadas, tiveram papel fundamental para construir pontes entre indivíduos e consolidar a sensação de pertencimento de um povo.

A tradição oral, por muito tempo, era uma das únicas formas de se preservar a cultura de um povo. O próprio folclore, que inclui contos e lendas, é um exemplo de tradição oral que manteve vivo costumes, crenças e a moral de povos ao redor do mundo.

Ilustração de Ivan Bilibin

Os irmãos Grimm, acadêmicos e estudiosos responsáveis por registrar grande parte dos contos de fadas que conhecemos atualmente, acreditavam que muitas dessas narrativas tinham origem em uma história cultural compartilhada que remonta ao nascimento dos idiomas indo-europeus. Ou seja, contos de fadas eram contados e compartilhados muito antes das línguas que conhecemos hoje existirem e nos ajudam a rastrear as origens de diversos povos e culturas.

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Os contos de fadas estão intrinsecamente ligados à memória coletiva. Em meio a transformações sociais e políticas causadas pelas guerras napoleônicas no século XIX, os irmãos Grimm e outros estudiosos recorreram às histórias tradicionais como forma de exaltar a cultura nacional e encontrar pontos em comum entre os indivíduos dos países que estavam se consolidando na época.

A partir do princípio de que a cultura e as tradições influenciam a forma como uma sociedade se organiza, os contos de fadas passam a ser vistos como um registro histórico e são usados como forma de unificar um povo e representar um sentimento de identidade.

A atemporalidade dos contos de fadas

Hoje em dia, os contos de fadas não apenas ajudam a contar a história de um país, mas também representam narrativas de resistência, símbolos culturais e despertam a memória coletiva e uma sensação de pertencimento.

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Eles permanecem atemporais e universais, seja por meio das diversas adaptações para o cinema, como as adoradas histórias trazidas de volta pela Disney e apresentadas para novos públicos, ou por lendas como a de Kitsune, a raposa de nove caudas, que continuam vivas no folclore nacional do Japão.

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