Muito antes do período vitoriano, época em que Dickens popularizou os contos de fantasmas natalinos na Inglaterra, e mesmo antes desta festa se tornar um dos maiores marcos comerciais do ano, o Solstício de Inverno e o Yule eram comemorados pelos povos pagãos.
O solstício de inverno é o dia mais escuro do ano no Hemisfério Norte e, especialmente no Norte da Europa, é o momento em que o sol menos toca a superfície, com noites longas e frias. Algumas nações acreditavam que era o momento no qual os mortos poderiam fazer contato com os vivos. Nesta época, assim como hoje, os natais eram festejos comemorados em grupos, com ceias, fogueiras, frio e bebidas alcoólicas. Sem celulares, televisão ou mesmo a energia elétrica, restava apenas a boa e velha contação de histórias para animar — ou assustar — a noite, e relembrar os que já partiram. Como o frio era um intensificador de doenças, causando muitas mortes, dezembro também era um mês para se imaginar o que nos aguarda no além-túmulo.
Nos países nórdicos, em períodos pré-cristãos, celebrava-se sazonalmente o Yuletide, que também contemplava o solstício de inverno e durava vários dias. Alguns historiadores conectam o Yule ao folclore da Caçada Selvagem, uma ocasião em que diversas figuras fantasmagóricas cruzam o céu em procissão, e também aos draugr, criaturas mortas-vivas que podiam andar pela Terra.
No caso do Natal cristão, comemorado anualmente no dia 25 de dezembro, celebra-se o nascimento de Cristo, embora a data conhecida pelo seu nascimento por historiadores fosse, antes do século V, o dia 6 de janeiro. Quando o Norte da Europa foi cristianizado, muitas das tradições locais foram mantidas e permutadas com os países católicos, tornando este período rico em cultura. A Inglaterra, que teve partes de suas terras invadidas pelos nórdicos e que tinha grande contato com os povos gaélicos, foi um epicentro de diversas culturas. Por terem o hábito da escrita — mesmo que em manuscritos, à época —, puderam registrar e agrupar os seus costumes, formando uma tradição única e nova, mesmo para a religião cristã, que permaneceu em praticamente todos os países da Europa.
A Inglaterra, tão presente na autoria dos contos de fantasmas de Natal, foi o centro da 1ª Revolução Industrial. Com o grande movimento de migração das pessoas para a capital e o crescimento exponencial de Londres, a população passou a ter “acesso” à alfabetização. Em contraste a isso, é grande também o número de pessoas em situação de rua, alto índice de violência e transmissão de doenças sem tratamento, além das conhecidas péssimas condições de trabalho. Elizabeth Gaskell, autora de “A História da Velha Ama”, publicou o romance social Norte e Sul em 1854, que fala sobre as consequências da Revolução Industrial. A alfabetização da classe trabalhadora e o interesse por entretenimento, aliada às novas tecnologias de impressão, possibilitaram vias mais acessíveis de contato com os livros. Nesta época, nota-se um maior número de exemplares sendo vendidos — e as histórias de suspense e terror, que estavam em alta no século XIX, fizeram com que vários autores de contos e livros deste gênero fossem publicados durante e após o período vitoriano.
No Brasil, incorporamos diversos elementos da festa norte-hemisférica, como o pinheiro decorado, a farta ceia, a troca de presentes e um Papai Noel com casaco de pele. Embora aqui seja o período do solstício de verão — os dias mais quentes e ensolarados do ano —, que nós possamos emprestar, quase poeticamente, as tradições dos países gélidos da antiguidade, assim como a escuridão de suas noites para podermos, também, conhecer suas histórias de fantasmas.
Trecho de "Smee", de A. M. Burrage
— Não — disse Jackson com um sorriso de reprovação. — Me desculpem. Não quero atrapalhar o jogo. Não vou fazer isso porque vocês podem se divertir sem mim. Mas não vou participar de nenhum joguinho de pique-esconde.
Era véspera de Natal e éramos um grupo de quatorze com a energia própria da juventude. Tínhamos jantado bem, era a época de jogos infantis e todos estávamos com vontade de jogá-los; isto é, todos, menos Jackson. Quando alguém sugeriu pique-esconde, houve aprovação arrebatadora e quase unânime. A voz dele foi a única dissidente.
Não era a cara do Jackson ser estraga-prazeres ou se recusar a fazer o que os outros queriam. Alguém perguntou se ele estava se sentindo mal.
— Não — respondeu. — Estou me sentindo perfeitamente bem, obrigado. Mas — acrescentou com um sorriso que aliviou, sem anular, a recusa seca — não vou brincar de pique-esconde.
Um de nós perguntou por quê. Ele hesitou por uns segundos antes de responder.
— Às vezes, fico em uma casa onde uma garota morreu brincando de pique-esconde no escuro. Ela não conhecia a casa muito bem. Havia uma escada de empregados com uma porta. Quando foi perseguida, ela abriu a porta e pulou no que deve ter pensado que era um dos quartos… e quebrou o pescoço no pé da escada.
Todos ficamos com expressões preocupadas, e a sra. Femley disse:
— Que horror! E você estava lá quando aconteceu?
Jackson balançou a cabeça muito gravemente.
— Não, mas eu estava lá quando outra coisa aconteceu — disse ele. — Uma coisa pior.
— Eu não achava que pudesse haver algo pior.
— Pois isso foi — declarou Jackson, e tremeu visivelmente. — Ou foi o que me pareceu.
Acho que ele queria contar a história e estava procurando incentivo. Alguns pedidos, que podem ter parecido desprovidos de urgência, ele fingiu ignorar e saiu pela tangente.
— Algum de vocês já brincou de um jogo chamado “Smee”? É uma versão muito melhor do jogo de pique-esconde. O nome vem da aglutinação de It’s me, “sou eu” em inglês. Se vocês vão fazer esse tipo de brincadeira, talvez queiram experimentar essa. Vou explicar as regras.
“Cada jogador recebe um pedaço de papel. Todos estão em branco, menos um, onde se lê ‘Smee’. Ninguém sabe quem é ‘Smee’, só o próprio ‘Smee’… ou a própria, dependendo do caso. As luzes são apagadas e ‘Smee’ sai da sala e vai se esconder, e, depois de um intervalo, os outros jogadores saem para procurar, mas sem saber quem estão procurando. Um jogador, ao encontrar outro, o desafia com a palavra ‘Smee’, e o outro jogador, se não for a pessoa em questão, responde ‘Smee’.
“O verdadeiro ‘Smee’ não responde ao ser desafiado, e o segundo jogador fica em silêncio ao lado dele. Eles serão descobertos por um terceiro jogador que, depois de ter feito o desafio e não obter resposta, vai se juntar aos dois primeiros. Isso continua até todos os jogadores terem formado uma corrente, e o último a se juntar tem que pagar uma prenda. É um jogo bom, barulhento e animado, e, numa casa grande, costuma demorar para completar a corrente. Vocês podem querer experimentar; e eu vou pagar minha prenda e fumar um dos charutos excelentes do Tim aqui, ao lado da lareira, até vocês se cansarem.”
Comentei que o jogo parecia bom e perguntei a Jackson se ele tinha jogado.
— Sim — respondeu ele. — Joguei na casa sobre a qual contei para vocês.
— E ela estava lá? A garota que quebrou…
— Não, não — disse a sra. Femley, interrompendo. — Ele falou que não estava lá quando aconteceu.
Jackson pensou.
— Não sei se ela estava lá. Acho que talvez sim. Sei que éramos treze e que só devia haver doze. E juro que não sabia o nome dela, senão, acho que teria ficado louco quando ouvi aquele sussurro no escuro. Não, vocês não vão mais me ver participando dessa brincadeira, nem de nenhuma parecida. Acabou com a minha coragem, e não posso me dar ao luxo de tirar longas férias para me recuperar. Além do mais, poupa muitos problemas e inconveniências admitir de cara que sou covarde.
Tim Vouce, o melhor dos anfitriões, sorriu para nós, e, naquele sorriso, havia um significado que é às vezes expresso vulgarmente pelo piscar lento de um olho.
— Tem uma história a caminho — anunciou ele.
— Tem mesmo uma espécie de história — disse Jackson —, mas, se vem ou não…
Ele fez uma pausa e deu de ombros.
— Bem, você vai pagar uma prenda em vez de brincar?
— Sim, por favor. Mas tenha coração e seja generoso comigo. Não é pura maldade da minha parte.
— O pagamento adiantado garante a honestidade e promove bons sentimentos — disse Tim. — Você está, portanto, condenado a contar a história aqui e agora.
E aqui segue a história de Jackson, não revisada por mim e transmitida sem comentários para um público mais amplo:
Alguns de vocês, eu sei, já cruzaram com os Sangstons. Christopher Sangston e sua esposa, quero dizer. São meus parentes distantes… pelo menos, Violet Sangston é. Há cerca de oito anos, eles compraram uma casa entre North Downs e South Downs, na fronteira entre Surrey e Sussex, e, cinco anos atrás, convidaram-me para passar o Natal com eles.
Era uma casa bem velha, não sei dizer exatamente de que época, e certamente merecia o epíteto de “labiríntica”. Não era uma casa particularmente grande, mas o arquiteto original, quem quer que tenha sido, não se preocupou em economizar espaço e, no início, era muito fácil se perder dentro dela.
Bem, fui passar aquele Natal lá, tendo a garantia, pela carta de Violet, de que eu conhecia a maioria dos outros convidados e que os dois ou três que podiam ser estranhos para mim eram todos “gente boa e simples”. Infelizmente, sou um dos trabalhadores do mundo, e só pude fugir na véspera de Natal, embora os outros membros do grupo tenham se reunido no dia anterior. Mesmo assim, tive que me apressar para estar lá a tempo de jantar na minha primeira noite. Estavam todos se vestindo quando cheguei e tive que ir direto para o quarto e não perder tempo. Posso até ter atrasado um pouco o jantar, pois fui o último a descer, e foi anunciado que seria servido um minuto depois de eu entrar na sala de estar. Só tive tempo de dizer “oi” a todos que conhecia, de ser brevemente apresentado aos dois ou três que não conhecia, e tive que dar o braço à sra. Gorman.
Cito isso para explicar por que não peguei o nome de uma garota alta, morena e bonita que eu não conhecia. Tudo foi um pouco apressado e sempre sou péssimo em lembrar o nome das pessoas. Ela parecia fria, inteligente e um tanto severa, o tipo de garota que dá a impressão de saber tudo sobre os homens e quanto mais os conhece menos gosta deles. Senti que não ia me dar bem com aquela pessoa “boa e simples” de Violet, mas mesmo assim ela parecia interessante, e fiquei imaginando quem era. Não perguntei a ninguém porque tinha certeza de que ouviria alguém se dirigir a ela pelo nome em algum momento.
Mas, infelizmente, fiquei longe dela na mesa, e, como a sra. Gorman estava em plena forma naquela noite, logo me esqueci de me preocupar com quem a desconhecida poderia ser. A sra. Gorman é uma das mulheres mais divertidas que conheço, uma namoradeira descarada, porém inocente, com uma inteligência muito vivaz que nem sempre é cruel. Ela consegue pensar meia dúzia de passos à frente em uma conversa, assim como um especialista em um jogo de xadrez. Logo estávamos lutando, ou melhor, eu estava “me protegendo” nas cordas do ringue, e me esqueci de perguntar em voz baixa o nome da beleza fria e orgulhosa. A senhora do meu outro lado era uma estranha, ou tinha sido até alguns minutos antes, e não pensei em buscar informações ali.
Éramos doze, incluindo os próprios Sangstons, e éramos todos jovens, ou estávamos tentando ser. Os Sangstons eram os membros mais velhos do grupo, e seu filho Reggie, no último ano de Marlborough, devia ser o mais jovem. Quando se falou em jogar depois do jantar, foi ele quem sugeriu “Smee”. Explicou como jogar da forma que descrevi para vocês.
O pai dele se manifestou assim que todos entendemos o que precisávamos fazer.
— Se acontecer algum jogo desse tipo na casa — disse ele —, pelo amor de Deus, tomem cuidado com a escada dos fundos no patamar do primeiro piso. Há uma porta para ela e eu sempre quis derrubá-la. No escuro, qualquer pessoa que não conheça a casa muito bem pode pensar que está entrando em uma sala. Uma garota quebrou o pescoço naquela escada há cerca de dez anos, quando os Ainsties moravam aqui.
Perguntei como aquilo aconteceu.
— Ah, houve uma festa aqui na época de Natal e estavam brincando de pique-esconde, como você propõe — disse Sangston. — A garota era uma das pessoas que se esconderam. Ela ouviu alguém se aproximando, correu pelo corredor para fugir e abriu a porta do que ela pensava ser um quarto, evidentemente com a intenção de se esconder atrás dela enquanto o perseguidor passava. Infelizmente, era a porta que dava para a escada dos fundos, e essa escada é tão reta e quase tão íngreme quanto um poço. Ela estava morta quando a tiraram de lá.
Todos prometemos, para nosso próprio bem, ter cuidado. A sra. Gorman disse que tinha certeza de que nada poderia acontecer com ela, já que tinha seguro de três companhias diferentes e seu parente mais próximo era um irmão cujo azar constante era famoso na família. Vejam bem, nenhum de nós conhecia a infeliz garota, e, como a tragédia tinha dez anos, não havia necessidade de fazer cara de tristeza.
Bem, nós começamos o jogo quase imediatamente após o jantar. Os homens se permitiram apenas cinco minutos antes de se juntarem às mulheres, e o jovem Reggie Sangston deu uma volta para se certificar de que as luzes estavam apagadas em toda a casa, exceto nos aposentos dos empregados e na sala de estar, onde estávamos reunidos. Ele então se ocupou com doze pedaços de papel, que amassou em bolinhas e sacudiu entre as mãos antes de distribuí-las. Onze delas estavam em branco, e “Smee” foi escrito na décima segunda. Quem tirasse esta última era quem deveria se esconder. Abri a minha e vi que estava em branco. Um momento depois, apagaram-se as luzes, e, na escuridão, ouvi alguém se levantar e se esgueirar até a porta.
Depois de mais ou menos um minuto, alguém deu um sinal e corremos para a porta. Eu, pelo menos, não tinha a menor ideia de quem era “Smee”. Passamos de cinco a dez minutos correndo para lá e para cá nas passagens, entrando e saindo dos aposentos, desafiando uns aos outros e respondendo: “Smee?”, “Smee!”.
Depois de um tempo, os alarmes e as andanças diminuíram, e imaginei que “Smee” tinha sido encontrado. Acabei me deparando com um grupo de pessoas sentadas e imóveis prendendo a respiração em uma escada estreita que levava a uma fileira de sótãos. Juntei-me a elas apressadamente, depois de ter feito o desafio e recebido o silêncio como resposta, e, logo, mais dois retardatários chegaram, um correndo contra o outro para evitar ser o último. Sangston era um deles, e foi ele o condenado a pagar uma prenda, e depois de um tempo comentou em voz baixa:
— Acho que agora estamos todos aqui, não é?
Ele riscou um fósforo, olhou para a escada e começou a contar. Não foi difícil, embora quase tenhamos enchido a escada, pois cada um estava sentado um ou dois degraus acima do outro, e todas as nossas cabeças estavam visíveis.
— … nove, dez, onze, doze… treze — concluiu, e riu. — Ora essa, tem um a mais!
O fósforo tinha se apagado, e ele acendeu outro e começou a contar novamente.
Chegou a doze e soltou uma exclamação:
— Há treze pessoas aqui! Eu ainda não me contei.
— Ah, que bobagem! — Eu ri. — Você deve ter começado consigo mesmo e agora quer se contar duas vezes.
A lanterna do filho dele se acendeu, fornecendo uma luz mais brilhante e estável, e todos começamos a contar. É claro que contamos doze. Sangston riu.
— Bem, eu poderia jurar que contei treze duas vezes — disse ele.
Do meio da escada veio a voz de Violet Sangston, com um leve toque nervoso.
— Achei que havia alguém sentado dois degraus acima de mim. O senhor subiu, capitão Ransome?
Ransome respondeu que não, e também disse que achava que havia alguém sentado entre Violet e ele. Por um momento, houve algo incômodo no ar, uma ondulação fria que nos tocou a todos. Por aquele breve momento, pareceu a todos nós, acho, que algo estranho e desagradável havia acontecido e poderia acontecer novamente. Depois, rimos de nós mesmos e uns dos outros e ficamos à vontade mais uma vez. Éramos apenas doze, sim, e só poderia haver doze, e não houve discussão a respeito. Ainda rindo, voltamos à sala de estar para começar de novo.
Desta vez eu fui “Smee”, e Violet Sangston me descobriu enquanto eu ainda procurava um esconderijo. Essa rodada não durou muito, e formamos uma cadeia de doze em dois ou três minutos. Depois, houve um breve intervalo. Violet queria que trouxessem um xale para ela, e seu marido subiu para pegá-lo no quarto. Mal ele se foi, Reggie me puxou pela manga. Vi que ele estava pálido e nauseado.
— Rápido! — sussurrou ele. — Enquanto meu pai está longe. Me leve até a sala de fumar e me dê um conhaque ou um uísque ou algo assim. Você sabe o tipo de dose que um sujeito precisa tomar.
Fora da sala, perguntei qual era o problema, mas a princípio ele não respondeu, e achei melhor dar-lhe a bebida primeiro e perguntar depois. Preparei um conhaque bem escuro misturado com refrigerante, que ele bebeu de um gole só, e começou a bufar, como se tivesse corrido.
— Eu me senti muito mal — disse ele com um sorriso tímido.
— O que houve?
— Não sei. Você era “Smee” agora há pouco, não era? Bem, é claro que eu não sabia quem era “Smee” e, enquanto a minha mãe e os outros corriam para a ala oeste e encontravam você, eu fui para o leste. Há um armário de roupas fundo no meu quarto; eu o tinha como um bom lugar para me esconder quando fosse minha vez, e achei que “Smee” pudesse estar lá. Abri a porta no escuro, tateei e toquei na mão de alguém. “Smee?”, sussurrei, e, como não obtive resposta, pensei ter encontrado “Smee”. Bem, não sei como foi, mas uma sensação estranha e assustadora tomou conta de mim. Não consigo descrever, mas senti que algo estava errado. Acendi minha lanterna e não havia ninguém lá. Juro que toquei naquela mão, e eu estava bloqueando a porta do armário na hora, e ninguém poderia ter saído e passado por mim. — Ele bufou mais uma vez. — O que você acha disso?
— Você imaginou que tocou na mão de alguém — respondi, naturalmente.
Ele soltou uma risada curta.