Era o começo de verão de 1838. A primavera ainda adocicava o ar. Naquela manhã, a pólvora dos canhões anunciava o raiar do dia, pelo menos em Kensington. Toda a Inglaterra amanhecia em júbilo com a coroa sendo posta na cabeça de uma nova rainha.
Em um porão malcheiroso, um andar abaixo das coxias de um teatro decadente, pouco antes de Alexandrina Victoria nascer como rainha, nascia também uma menina.
O pai, George Sitwell, trabalhava nas dependências do teatro desde que se entendia por gente. Marigold, a jovem corista com quem ele havia se casado sete meses antes, dera seu último suspiro antes de os canhões soarem em Kensington e minutos depois de sua filha franzina chegar ao mundo.
A menina mal havia chorado, e a parteira entregou-a ao pai com um menear negativo de cabeça. Era quase certo que aquela coisinha mirrada não vingaria. Com aquela pequena criatura nos braços, George teve o desprazer de derramar algumas lágrimas. Três criaturas de sorte desgraçada, e ele se deu o direito de chorar por um segundo antes de deixar a menina em uma cesta perto da lareira e correr para seus afazeres do dia. Tinha que apagar as últimas tochas que iluminaram a noite e começar a abrir as cortinas para que o sol arejasse os corredores. Depois, teria que ocupar-se do enterro de Marigold e aproveitar o reverendo para que batizasse a recém-nascida antes que ela morresse como pagã.
Contrariando as expectativas do pai, da parteira e do reverendo que a consagrou com o nome de Victoria Marigold Sitwell – em homenagem à rainha e à falecida mãe –, a partir do segundo dia de vida a menina começou a chorar mais forte. Depois do primeiro mês, já tinha até alguma carne entre os ossos e a pele fina e havia rendido em afetos para si todas as mulheres do teatro.
As coristas e figurinistas por vezes fugiam de seus afazeres para espiar sua figura no porão, ou então roubá-la dali para que sua cesta ficasse perto delas. Revezavam-se em cuidados, mimos e brincadeiras para com Victoria, alegrando-se a cada um de seus sorrisos e conquistas mínimas. Faziam-na de boneca nos testes de roupas e maquiagem, e divertiam-se ao arrumar seus cabelos cor-de-trigo quando estes começaram a se fazer vistosos.
Tal qual a mãe de George havia feito, ele apenas esperou a pequena Victoria se firmar nos próprios pés e mostrar alguma firmeza nas mãos para arrumar-lhe um ofício. O Sr. Lawford, dono do estabelecimento, fora generoso em aceitá-la no teatro. Poderiam aproveitar os pés ágeis para levar recados, ou mesmo fazer pequenos transportes. Ajudar quem quer que fosse, no que quer que acontecesse, assim como seu pai quando mais jovem.
A música nunca foi estranha para a menina. Criou-se ouvindo toda a orquestra nas mais diversas horas do dia. À noite, durante os espetáculos, assobiava baixinho as melodias, sem nunca ter dado muita importância a saber de onde cada som vinha. O importante era que ele dava ritmo aos seus passos pela manhã e embalava seu sono durante a noite.
Foi no meio das correrias dançadas do trabalho, entre o levar de uma coisa ou outra, que Victoria parou pela primeira vez no meio do caminho, justo no centro do palco. Tinha os olhos fixos no fosso, onde a orquestra terminava de se alinhar. Observou o bastão do maestro rasgar o ar, seguido do som daquele instrumento grande apoiado nas pernas de alguns dos musicistas, preenchendo o ambiente ao seu redor como se o mundo se resumisse àquela melodia. Foi com cinco anos de idade, no mesmo dia em que a Rainha fazia aniversário, que a pequena Victoria Sitwell se apaixonou pelo violoncelo, pouco antes de levar um tapa na cabeça para voltar ao trabalho.
Esta pequena paixão infantil, eivada de inocência, não teria grandes consequências se não tivesse sido bem alimentada. Victoria passou a assistir aos ensaios da orquestra, escondida em qualquer sombra que tornasse seu corpo imperceptível. Para os espetáculos, tinha elegido para si o melhor lugar do teatro. Costumava espiar pelas frestas da madeira de debaixo do palco o modo que os músicos seguiam a regência da batuta. Nada de mal haveria nesta observação se Victoria tivesse se encantado por um segundo instrumento. O violino seria adequado para uma moça, mas achava-o estridente demais. O piano também não lhe traria nenhum mal, mas não lhe tinha muita graça. Poderia até ter se dedicado ao canto, mas sua natureza sempre fora de poucas palavras.
Problema também não haveria se não tivesse sido pega pelo maestro, sem chances de correr para longe como uma rata fujona.
— Você gosta de algum em particular?
Quando Victoria apontou para o violoncelo, não imaginou que encontraria no maestro um cúmplice – pelo menos depois que ele riu com gosto da escolha.
As primeiras classes foram difíceis. Teoria musical. Aprender outros ritmos antes de pôr as mãos no único som que lhe interessava. Só não foram mais difíceis do que a surra que levou do pai quando ele a viu com o violoncelo entre as pernas. Tinha dez anos então, e foi chamada de uma rameira desavergonhada. Por mais que George quisesse afastar a filha do instrumento, não teve coragem de fazê-lo. Não depois que o maestro disse que a menina tinha mais talento para a música do que para carregar recados – e ela era boa em levar recados, coisa que continuou a fazer até decidir que o único lar que conheceu na vida não lhe tinha mais nada a oferecer.
Victoria cresceu grave, profunda feito o instrumento que tocava. Trabalhava duro para se manter, sempre escutando dentro de sua cabeça o som do violoncelo, o baixo contínuo, dedilhando o ar como faria se tivesse com o instrumento em seus braços. À noite, depois do espetáculo, arrumava um instrumento emprestado para dar corpo às melodias que só precisavam daquele som, tão próximo à voz humana, para terem vida.
A surra que levou do pai quando apareceu de cabelos cortados, dizendo que se inscreveria para a seleção da Royal Academy of Music, fez com que ela quase não conseguisse participar do recital de seleção. O maestro, porém, mandou que ela deixasse de ser uma marica. Ele não tinha perdido tanto tempo em ensiná-la para que ela jogasse fora toda a habilidade adquirida.
Antes de virar Victor, Victoria teve que encarar o corpo maltratado enquanto escondia os seios com uma faixa apertada. Não tinha qualquer esperança de que aquela mentira a levaria para algum lugar, mas acabou chegando em uma turma cheia de homens com as melhores oportunidades de tocar do que as que um dia ela teve.
Sua comemoração foi feita com duas garrafas de vinho, divididas entre ela, o pai, o maestro e as três coristas, que assumiram o papel de mãe desde que ela era um bebê. Foi este pequeno grupo o responsável por lhe dar o primeiro violoncelo que pôde chamar de seu. Não era um instrumento nobre, mas era o máximo que eles poderiam comprar, e mais do que ela imaginou que o pai poderia fazer. George havia desistido de persuadi-la. Pelo menos ela não tocaria mais aquele instrumento indecoroso de vestido. Uma pena que não tivesse nascido logo como homem.
As aulas não eram fáceis. Para Victoria, ou melhor, Victor, mostrou-se cada vez mais fácil esconder a própria ignorância mantendo-se calado. Não fez amigos, mas tinha dedicação suficiente para chamar atenção dos professores. Uma criatura estranha, mas que bom músico não era? E foi nisso que os mestres se justificavam, em cada nova oportunidade dada para o aluno excêntrico.
Talvez fosse a arrogância de todos os homens em achar que uma mulher não pudesse ser tão prodigiosa em um instrumento tão complexo, e, ao mesmo tempo, indigno por forçar o músico a torcer o corpo sobre ele, que fez com que nenhum professor se incomodasse com seu rosto imberbe. Os homens eram fáceis de enganar, mas as mulheres, em seus pianos e cantos, sabiam o que se escondia por detrás daquele violoncelo. Elas sabiam e se calavam, porque aquela música de muita alma mais valia do que o fel de qualquer língua.
O violoncelo, que na infância fora o ídolo de Victoria, virou seu amante quando ela se fez adulta. Não havia vergonha em abraçá-lo descaradamente sobre o palco, mantendo-o colado a suas pernas virgens. Abrira mão de seus cabelos, de um marido e uma família por quem trabalharia noite e dia para manter, mas sentia-se satisfeita só em poder sentir entre os dedos o peso do arco. Eram duas criaturas que se fundiam em uma, e quando o som começava, era como se Victoria falasse tudo o que sua voz tímida calava.
O primeiro concerto no Hanover Square Rooms fez com que suas mãos suassem. Já havia tocado para condes e duques, mas não em um palco de tamanho valor. Não perdeu nenhuma nota e, depois que o quarteto de cordas deixou o palco, foi cumprimentado pelo príncipe, na figura de um de seus secretários.
O convite para compor a Philharmonic Society of London veio depois de sua terceira apresentação solo, mas demorou a ser aceito. Seu pai, não tão velho, havia morrido na mesma noite na qual ela recebera a honra. O velho maestro tinha contatos o suficiente para acompanhar a carreira da pupila, e foi ele o responsável por redigir a carta pela qual ela aceitou compor a sociedade.
Era o começo do verão de 1860. A primavera ainda adocicava o ar, mas não houve canhões logo pela manhã. Ainda assim, o coração de Victoria palpitava. Seu traje de gala parecia não se ajustar ao corpo, por mais que não houvesse vivalma capaz de desconfiar que, por trás do colete, da casaca e da cravat, havia o corpo jovem de mulher. O amante parecia sentir o desconforto entre suas pernas e o arco perdido entre seus dedos. Não havia como não olhar para a plateia antes de se acomodar propriamente. Como em todas as apresentações que marcaram sua carreira, Victoria não perdeu nenhuma nota. Naquela noite, a menina que nasceu sob um choro desafinado no porão de um teatro decadente ganhou aplausos da rainha com quem compartilhava o nome.