Trecho de "O homem que as árvores amavam" - Algernon Blackwood.
Ele pintava árvores como se detivesse algum instinto especial de adivinhação de suas qualidades essenciais.
Ele as compreendia. Sabia por que em uma floresta de carvalhos, por exemplo, cada indivíduo era absolutamente distinto de seus semelhantes, e por que nenhuma faia no mundo era igual à outra. As pessoas lhe pediam que pintasse uma limeira ou bétula favorita, pois ele capturava a individualidade de uma árvore como alguns o fazem com os cavalos. Como conseguia era um mistério, pois nunca tivera aulas de pintura. Seus desenhos costumavam ser bastante imprecisos, de maneira que, enquanto sua percepção da personalidade de uma árvore era vívida e genuína, a pintura poderia quase se aproximar do ridículo. Ainda assim, o caráter e a personalidade daquela árvore em particular ganhavam vida, emergiam sob o pincel: brilhante, emburrada, sonhadora, qualquer que fosse o caso, amigável ou hostil, boa ou má.
Não havia mais nada no mundo que fosse capaz de pintar. Flores e paisagens, ele apenas se atrapalhava em manchas de tinta; com pessoas e animais, era um caso perdido. Às vezes conseguia pintar os céus, ou efeitos de vento em folhagens, mas via de regra deixava essas coisas de lado por completo. Atinha-se às árvores, seguindo com sabedoria um instinto guiado pelo amor. Era estarrecedora, quase desconcertante, a maneira como fazia uma árvore parecer… viva.
Sim, Sanderson sabe o que está fazendo quando pinta uma árvore!, pensou o velho David Bittacy, membro da Honorabilíssima Ordem do Banho e conhecedor das Matas e Florestas. Ora, quase dá para ouvi-la farfalhar. É possível sentir o cheiro, ouvir a chuva pingando por entre as folhas, os galhos crescendo e se movendo.
Havia expressado dessa forma sua satisfação, em parte para se persuadir de que os vinte guinéus haviam sido bem gastos — já que a esposa pensava o contrário —, e em parte para explicar o espantoso realismo do velho cedro emoldurado acima da escrivaninha.
De qualquer maneira, pensava-se que a mente do sr. Bittacy era austera, para não dizer ranzinza. Poucos teriam adivinhado nele um amor secreto e tenaz pela natureza, o qual havia sido criado pelos anos passados nas florestas e selvas ao leste do mundo. Era incomum para um inglês, possivelmente em razão de algum ancestral euroasiático. Mantinha em segredo, como se tivesse vergonha, um senso estético que pouco se encaixava em seu tipo, incomum também pela intensidade. As árvores, em particular, nutriam esse amor, pois ele também entendia as árvores. Sentia uma sutil comunhão com elas, decorrente talvez do tempo em que vivera tomando conta delas, protegendo-as ao longo de anos de solidão sob suas grandes e sombrias presenças.
Guardava tudo isso para si, é claro, pois conhecia o mundo em que vivia. Também mantinha segredo da esposa, até certo ponto. Sabia que aquilo se colocava entre eles, que ela temia e se opunha. O que ele não sabia, ou não havia se dado conta, era o quanto ela compreendia o poder que as árvores detinham sobre a vida dele. O medo que ela sentia, pensava ele, dava-se apenas em razão dos anos na Índia, quando o dever o levava por semanas para longe dela e para as selvas fechadas, enquanto ela permanecia em casa, temendo todos os males que poderiam assolá-lo. Isso, é claro, explicava a oposição instintiva dela à paixão pelas matas que ainda o influenciava e se agarrava a ele. Era uma resposta natural àqueles dias de ansiedade e espera pelo retorno dele.
Filha de um pastor protestante, a sra. Bittacy era uma mulher adepta do sacrifício pessoal e encontrava em quase tudo a felicidade e o dever de compartilhar as alegrias e tristezas do marido, a ponto de se esquecer completamente de si. Era apenas na questão das árvores que ela não era tão bem-sucedida. Aquilo continuava sendo um problema difícil de se chegar a um acordo.
Ele sabia, por exemplo, que a oposição dela à pintura do cedro não se dava em razão do preço, mas sim pela maneira desagradável como a transação enfatizava o conflito entre os interesses em comum dos dois — um único, porém profundo, conflito.
Sanderson, o artista, não ganhava muito dinheiro com o estranho talento. Os cheques eram esporádicos, pois poucos eram os donos de árvores belas ou interessantes que desejavam tê-las pintadas. Ele também guardava para si os “estudos” que fazia para o próprio prazer, recusando-se a vendê-los mesmo que houvesse compradores. Apenas uns poucos amigos mais íntimos sequer chegavam a vê-los, pois ele detestava ouvir as críticas ignorantes dos que não compreendiam. Não que se importasse que rissem de suas habilidades — admitia-o com desprezo —, mas comentários sobre as personalidades das árvores em si poderiam facilmente feri-lo ou enfurecê-lo. Ele se ressentia de comentários desdenhosos a respeito delas, como se fossem insultos contra amigos próximos e que não podiam se defender. Ficava pronto para a briga em um instante.
— É realmente extraordinário — disse uma mulher que compreendia — que consiga fazer aquele cipreste se parecer com um indivíduo, quando na realidade todos os ciprestes são exatamente iguais.
Ainda que aquele pedacinho de bajulação calculada tivesse chegado tão perto de dizer a coisa certa, Sanderson ficou vermelho como se ela tivesse desdenhado de um amigo bem diante de seus olhos. Passou com truculência na frente dela e voltou o quadro para a parede.
— Quase tão estranho — respondeu rudemente, imitando a tola enfatização da mulher — quanto você ter imaginado individualidade em seu marido, quando na realidade todos os homens são exatamente iguais!
Considerando que a única coisa que diferenciava o marido dela do restante do populacho era o dinheiro pelo qual ela havia se casado com ele, as relações de Sanderson com aquela família em particular acabaram no ato, levando consigo quaisquer compras em potencial.
Talvez a sensibilidade dele fosse exagerada. De qualquer maneira, o caminho para seu coração estava nas árvores. Podia-se dizer que ele as amava, pois sem dúvida tirava uma esplêndida inspiração delas. Nunca era seguro criticar a fonte de inspiração de um homem, fosse a música, a religião ou uma mulher.
— Acho que talvez seja um pouco extravagante, querido — disse a sra. Bittacy, referindo-se ao cheque para o cedro —, quando também precisamos tanto de um cortador de grama. Mas, considerando que lhe dá tanto prazer…
— Faz com que me recorde de certo dia, Sophia — respondeu o velho cavalheiro, olhando com orgulho para ela e então com afeto para o quadro —, um dia que já se foi há muito. Ela me lembra outra árvore… aquele quintal em Kent na primavera, os pássaros cantando nas lilases, e alguém em um vestido de musselina, esperando pacientemente debaixo de um certo cedro… sei que não é o mesmo do quadro, mas…
— Eu não estava esperando — disse ela, indignada —, estava apanhando pinhas para o fogo da sala de aula…
— Pinhas não crescem em cedros, minha querida, e salas de aula não acendiam fogos em junho quando eu era jovem.
— E, de qualquer maneira, não é o mesmo cedro.
— Ele me fez gostar muito de todos os cedros — respondeu ele —, e me lembra de que você ainda é a mesma garota…
Ela atravessou a sala, parando ao lado dele. Juntos, ficaram olhando pela janela, para onde um pobre cedro-do-líbano se erguia solitário no jardim da cabana em Hampshire.
— Você continua tão sonhador como sempre — disse ela, gentil. — Não me arrependo nem um pouco do cheque, de verdade. Só teria sido mais real se fosse a árvore original, não teria?
— Aquela foi derrubada há muitos anos. Passei por lá ano passado. Não há mais nenhum sinal dela — respondeu ele, sempre carinhoso. Naquele momento, quando ele a soltou, ela foi até a parede e tirou com muito cuidado a poeira sobre o quadro que Sanderson havia feito do cedro no jardim. Passou um pequeno lenço ao redor de toda a moldura, erguendo-se na ponta dos pés para alcançar a borda superior. — O que mais gosto no quadro — prosseguiu o velho, falando sozinho depois que a esposa se retirou — é a forma como ele o fez parecer vivo. Todas as árvores o têm, é claro, mas foi um cedro que me ensinou… esse “algo” que possuem as árvores, que faz com que saibam que estou lá quando me aproximo para observá-las. Suponho que o senti aquele dia porque estava apaixonado. O amor revela a vida por toda parte. — Ele olhou por um instante para o cedro-do-líbano, o qual se erguia sombrio e magricelo sob o entardecer que se aproximava. Uma expressão curiosa e sonhadora surgiu por um momento em seu olhar. — Sim, Sanderson a viu como é — murmurou —, sonhando solenemente em uma vida fosca e oculta contra a orla da floresta. Tão diferente daquela outra árvore em Kent quanto eu sou… do vigário, por exemplo. É bastante estranho também. Não sei nada sobre o assunto. O cedro que amei; esse velho amigo que respeito. Amigável, porém… sim, bastante amigável, de maneira geral. Ele viu a amigabilidade e a pintou bastante bem. Gostaria de conhecê-lo melhor — acrescentou. — Gostaria de perguntar como viu com tamanha clareza que a árvore se ergue ali, entre esta cabana e a floresta, mas, de alguma forma, mais simpática conosco do que com a massa de árvores atrás. Um tipo de intermediário. Isso eu nunca havia percebido. Posso ver agora, através dos olhos dele. A árvore se ergue como uma sentinela… protetora, até.
Ele se voltou de supetão para olhar através da janela, avistando a grande e agourenta massa que era a floresta nos limites do pequeno jardim, ainda mais próxima na escuridão. O jardim, tão certinho com seus canteiros de flores, parecia quase impertinente, um pequeno e colorido inseto que pousara sobre um monstro adormecido. Uma mosca espalhafatosa em uma dança insolente às margens de um rio tão grande que poderia engolfá-la ao lançar a menor das ondas. A floresta que crescera por mil anos e se alastrara até as profundezas era um monstro adormecido, de fato. A cabana e o jardim ficavam próximos demais de sua boca. Quando ventos fortes levantavam as sombrias bordas negras e púrpuras…
Ele amava essa sensação da personalidade da floresta. Sempre amara.
Estranho, pensou, muito estranho que árvores me causem essa sensação da vastidão da vida! Costumava senti-la na Índia, em particular; em matas canadenses também; mas, até agora, nunca em pequenos bosques ingleses. Sanderson é o único homem que conheci que também já sentiu isso. Ele nunca disse, mas ali está a prova. E se voltou mais uma vez para a pintura amada. Uma emoção de vida atípica irrompeu dentro dele enquanto olhava. Eu me pergunto; por Deus, eu me pergunto, se uma árvore… hã… em qualquer significado legal do termo, poderia ser… viva. Lembro-me de um tutor da universidade dizendo há muito tempo que as árvores de outrora eram capazes de se mover, organismos animais de algum tipo que permaneceram imóveis por tanto tempo se alimentando, dormindo e sonhando no mesmo lugar, que acabaram por perder a capacidade de se levantar!
Fantasias voaram de um lado para o outro na mente dele. Acendendo um charuto, ele se jogou em uma poltrona próxima à janela aberta e deixou que voassem. Melros-pretos assoviavam nos arbustos do outro lado do jardim. Ele sentia o cheiro da terra, das árvores e flores, o perfume da grama cortada e dos urzais ao longe, no coração da mata. A brisa veranil soprava sem fôlego através das folhas, mas a grande Nova Floresta mal havia erguido os contornos ondulantes, de sombras negras e purpúreas.
O sr. Bittacy, no entanto, conhecia intimamente cada detalhe do ermo ao redor. Conhecia todos os vales purpúreos pincelados com ondas de tojos amarelos, doces com mirtos e juníperos, brilhando com poças negras e cristalinas voltadas para o céu. Lá os gaviões voavam baixo, descrevendo círculos de hora em hora, enquanto o voo rápido dos quero-queros aprofundava a calmaria com gritos petulantes e melancólicos.
Ele conhecia os pinheiros solitários, pequenos, vigorosos e cobertos de grama, árvores que cantavam para os ventos perdidos, para viajantes como os ciganos que erguiam tendas parecidas com arbustos debaixo deles. Conhecia os pôneis desgrenhados, com potros que mais pareciam jovens centauros; os gaios tagarelas, o chamado leitoso dos cucos na primavera, o surgimento dos abetouros nos pântanos distantes. Conhecia também os matagais de azevinhos vigilantes, estranhos e misteriosos com suas belezas sombrias e fascinantes, bem como o brilho amarelo das folhas pálidas e caídas.
Ali, toda a floresta vivia e respirava em segurança, a salvo de mutilações. Não havia o terror do machado para assombrar a paz da vasta vida subconsciente, nem do Homem devastador para afligi-la com o medo da morte prematura. Sabia que era suprema; espalhava-se e se insinuava sem se esconder. Não se erguia para levar avisos, pois nenhum vento trazia mensagens de alerta enquanto crescia em direção ao sol e às estrelas.
Contudo, uma vez que ficavam para trás os portais folheados, as árvores do interior viviam o contrário. As casas as ameaçavam; elas sabiam que estavam em perigo. As estradas já não eram clareiras de relva silenciosa, mas sim caminhos cruéis e barulhentos pelos quais os homens chegavam para atacá-las. Elas eram civilizadas, cuidadas… mas apenas para um dia serem mortas. Até mesmo nos vilarejos, onde o repouso solene e imemorial de castanheiros gigantes imitava a sensação de segurança, a queda de uma bétula contra sua massa, impaciente diante dos menores ventos, trazia um aviso.
A poeira sufocava as folhas. A música no interior das vidas silenciosas se tornava inaudível sob os gritos do tráfego turbulento. Elas aguardavam e rezavam para adentrar a grande paz da floresta além, mas não podiam se mover. Sabiam, também, que a floresta, com seu profundo e imponente esplendor, desprezava-as e se apiedava delas. Elas pertenciam aos jardins artificiais, aos canteiros de flores forçados a crescer de uma forma só…
Gostaria de conhecer melhor o caro artista, foi o pensamento com o qual o sr. Bittacy retornou de todo às coisas práticas da vida. Será que Sophia iria se incomodar…
Ele se levantou ao soar do gongo, espanando as cinzas que haviam salpicado o colete antes de puxá-lo para baixo. Era alto e esguio, de movimentos agitados, tal que, não fosse pelo bigode prateado, poderiam confundi-lo na meia-luz com um homem na casa dos quarenta. Vou sugerir a ela de qualquer maneira, decidiu enquanto subia as escadas para se vestir. Acreditava mesmo que Sanderson poderia explicar todo um mundo de coisas que ele sempre sentira sobre as árvores. Um homem capaz de pintar a alma de um cedro daquela forma deveria saber de tudo.