Os habitantes das povoações ou aldeias dormem cedo e, por isso, na Passagem das Pedras, a pouco mais das dez horas da noite, só se via brilhar uma luz cuja claridade saía da janela do oitão da casa do fim da rua. Tudo mais era treva e silêncio sob a imensidade do céu estrelado.
Do peitoril da mesma janela, debruçava-se um moço, chegado há pouco da cidade, a conversar com um rapazinho, que estava assentado à borda da calçada, e dizia-lhe:
— O sono se esqueceu de ti, Valentim.
— Sr. doutor não me conhece — respondeu o menino com vivacidade —, estou acostumado a tudo! Tenho viajado com meu pai por todo este mundão de meu Deus! Muitas vezes caminhamos com a lua até a meia-noite ou uma hora da madrugada.
— Tu que tens viajado muito — disse o moço gracejando —, diz-me o que é aquilo ali, na linha do horizonte, para o lado do nascente?
— Ali, Sr. Edmundo? — apontou Valentim. — É a serra das Antas.
— É fértil aquela serra? — tornou ele.
— Assim, assim — volveu o campônio —, fazem roçados nas quebradas e plantam alguma cana, mas coisa pouca.
— Aqui, deste outro lado, vejo outra serra muito alta — disse o Dr. Edmundo.
— Qual? Aquele serrote? Parece alto porque está mais perto — volveu o menino —, aquela é a Serra do Areré; mas é encantada, ninguém vai lá.
— Ninguém! Por quê? — disse Edmundo, com espanto.
— Porque, se for, não voltará mais; dizem que tem uma gruta onde mora uma moça encantada numa cobra, que à noite sai pelos arredores a fazer distúrbios.
— E acreditas nessas bruxarias, Valentim?
— Ora, se acredito; minha avó também não acreditava, assim como o senhor, mas agora está certa e mais que certa da verdade. Uma noite destas, viu, ela mesma, descer da serra e passar cantando pela estrada uma moça bonita, vestida de branco. E o senhor quer saber? Ia seguida pelo diabo, um moleque preto de olhos de fogo, com uma cauda comprida que arrastava no chão!
— Isto é sério, Valentim?
— Ora, se é! Ela trazia também um cachorro preto que dava ondas à claridade da lua! Minha avó quase morre de medo; chamou meu pai, e ele também viu. Conta a quem quiser ouvir; e todos sabem que meu pai não é homem de mentiras.
— Te fazia mais inteligente, Valentim! Não vês que isto é uma história de bruxa sem fundamento, inventada pela superstição do povo?
— Quem contou ao senhor doutor que é história de bruxa?! — disse o menino com exaltação. — Acredito, porque eu mesmo já vi. Em uma tarde dessas, ia eu com minha irmã Ritinha pastorear umas cabras, lá para as faldas do Areré... Não se ria, senhor doutor, olhe que eu vi, não estou mentindo... ela estava em pé sobre o monte, tinha um livro aberto na mão, mas não lia, olhava para o céu como aquela Nossa Senhora da Penha, que está pintada num quadro da igreja do Nosso Senhor do Bonfim.
— Quem estava de pé no monte? — perguntou Edmundo, rindo.
— A moça encantada — respondeu Valentim.
O Dr. Edmundo ficou pensativo. Muitas vezes tinha zombado da credulidade do povo, e não podia tomar a sério aquelas histórias incoerentes; mas procurava o fio da realidade perdido naquele labirinto de ideias extravagantes e fantásticas.
Averiguar o fato seria uma distração para a monotonia de seus dias, para o aborrecimento de sua vida cansada das brilhantes misérias das grandes cidades; por isso fingiu acreditar nas ingênuas palavras do camponês e disse-lhe:
— Pois bem, Valentim, se ficar aqui mais alguns dias irei contigo à gruta para ver a moça encantada. Se for bonita, caso-me com ela.
— Não graceje, senhor doutor... Ela tem pacto com Satanás! Dizem que, onde aparece, é desgraça certa. Chamam-na “A Funesta”. Deus me livre de encontrá-la. Boa noite, já é tarde, e a vovó zanga-se quando me demoro. Sai sempre de madrugada? A que horas quer os cavalos?
— Às quatro, não falte.
— Não, senhor — disse Valentim, e desapareceu correndo pela encosta.
O Jaguaribe corria em frente da janela, onde o Dr. Edmundo ficou ainda a cismar; mas sua vista errante parou sobre a lua erguendo-se no firmamento azul, como uma hóstia de ouro.
A solidão era completa, o silêncio era profundo!
Nem o vento movia os ramos das árvores. Elas se levantavam do meio da sombra projetada pela copa, como espectros cismadores.
De repente, soou ao longe uma voz doce e triste entoando uma canção francesa, e era tão saudosa, tão cheia de melancolia que as próprias pedras da margem pareciam comover-se, escutando:
Te souvient tu Marie
De notre enfance au champs
Notre jouet a la prairie,
J’avais alors quinze ans.
A voz era de mulher e vinha se aproximando. Já se distinguia o som de uma harpa com que ela se acompanhava.
Deslizando mansamente pelo rio, vinha de longe um pequeno bote; era dele que partia o som melancólico da harpa e as estrofes saudosas da canção, que prosseguia assim:
Te souvient tu même
De nos transports brülants,
Quand je te dis: t’aime...
J’avais alors quinze ans.
Le bruit de cette fête
Retour dans mon coeur
Le temps que je regrets
C’est le temps de bonheur.
Au présent je soupire...
Mes yeux sont baissés,
Ils ont craint de me dire
Mes beaux jours sont passés.
Ma bouche em vain répète
De regrets superflus!
Les temps que je regret
C’est le temps que n’est plus.
Quando a pequena embarcação passou por defronte da janela, Edmundo pôde contemplar à vontade a formosa bateleira. Ela vestia branco, tinha os cabelos soltos e a cabeça cingida por uma grinalda de rosas.
De pé no meio do bote, encostava a harpa ao peito e tocava com maestria divina! O luar dava-lhe em cheio nas faces esmaecidas pelo sereno da madrugada, e os olhos extremamente belos estavam amortecidos por uma expressão magoada de tristeza indefinível. Algumas gotas de pranto umedeciam-lhe as pálpebras e tremulavam ainda nas negras pestanas.
Vinha, ali também assentado no banco da proa, sustentando o remo e movendo-o com perícia, uma figura negra e peluda, feia de meter medo.
E, para mais confirmar a sua parecença com o rei das trevas, o tal moleque tinha uma cauda que, achando pouca acomodação no banco, se tinha estendido pela borda do bote, e parecia brincar na superfície das águas.
De espaço em espaço, a enorme cabeça de um cão cor de azeviche aparecia e tornava a ocultar-se aos pés da cantora.
O bote passou defronte da janela; a voz foi se perdendo ao longo do rio, até sumir-se.
O silêncio restabeleceu-se.
O Dr. Edmundo era que não saía do pasmo em que o tinha deixado aquela estranha aparição! Julgava-se alucinado! Duvidava do testemunho de seus próprios olhos, e para certificar-se de que não sonhava, beliscou com força as mãos e sentiu-se acordado.
Fechou a janela e foi deitar-se; mas não podia dormir; a sedutora imagem o perseguia com aferro.
O Dr. Edmundo havia viajado muito, estivera em Paris, onde gastou quase uma fortuna; mas nunca fora tão singularmente impressionado.
Quem seria aquela mulher?, pensava ele. Donde vinha? Para onde ia? Seria o anjo da saudade, perdido nas solidões da noite? As melancólicas notas daquele canto traduziriam o poema de um amor infinito sepultado nas cinzas do coração?
Por que capricho aquela criatura formosa, romântica e ideal misturava o belo com o horrível? Por que se acompanhava com figuras tão irrisórias? Mistério!
Ele concordou logo que Valentim tinha um pouco de razão, pois estava fora de dúvida que, por aquelas paragens, existia a verdadeira causa que dava origem à crença do povo; mas em que sítio morava essa rica senhora, que se comprazia em mistificar os simples habitantes daquela povoação com seus caprichos romanescos?
O Dr. Edmundo voltava-se no leito, frenético de impaciência, porque não podia achar uma explicação razoável para o que acabava de ver. Querendo imaginar que a moça fosse uma harpista e cantora de esquina que por ali aparecesse, rejeitou a ideia, porque lhe pareceu inadmissível que uma dessas infelizes pudesse se trajar com tanto luxo; pois tinha visto bem, ao clarão da lua, brilhar no dedo da mão que ela passava nas cordas da harpa um lindo anel de brilhantes.
Fugindo com a ideia para o campo das recordações, o moço pensou em Veneza, nas gôndolas, nas serenatas ao luar. Depois figurou-se na Alemanha, viu seus castelos feudais: uns pendurados às verdes encostas das margens do Reno, outros no gosto da arquitetura normando-gótica, que floresceu no século XII, e levando às nuvens suas torres orgulhosas. Passavam-lhe na vista as belas muralhas, as pontes levadiças, os fossos, as ameias, os mirantes, as arcadas, os jardins cercados de rochas e as fontes murmurantes! Ainda lhe apareceu à mente o rosto formoso de uma fada, e lhe embalaram os ouvidos as notas saudosas do canto melancólico com que dizem que ela seduz os viajantes nas margens daquele rio. Assim, adormeceu enlevado.