Antes de terminarmos a leitura deste livro, sentiremos uma de nossas mãos segurando o rosto, reclinado, enquanto pensamos: Como foi possível, um dia, tamanha crueldade?
A verdade é: só recentemente as pessoas atípicas estão sendo atendidas de forma humanizada. A brasileira Nise da Silveira (1905 – 1999) foi uma médica psiquiátrica que revolucionou o tratamento dos transtornos mentais em nosso país. Ela expôs as barbáries as quais as pessoas com deficiência intelectual eram submetidas no hospital psiquiátrico no qual trabalhava. O filme “Nise: O Coração da Loucura” (2005), estrelado por Glória Pires, é um retrato do desasseio, desrespeito e inflexibilidade aos quais os pacientes estavam sujeitos.
Hoje, não se utilizam mais os termos hospício, louco, insano ou qualquer outra palavra que difame ainda mais a já severa situação dos transtornos de humor e de personalidade. A decisão de manter os termos próximos aos descritos pela autora foi pensada com cuidado para o leitor poder compreender, de forma completa e palpável, como os atípicos eram vistos e tratados antigamente – e como isso hoje causa aversão, mais de cem anos depois.
A realidade já é triste demais, mesmo tantos anos após Sigmund Freud iniciar sua carreira de estudo e tratamento de quem antes era visto como um problema a ser trancafiado em grades distantes para seus gritos não serem ouvidos. Muitos dos transtornos são tratáveis e os recursos terapêuticos garantem uma melhora na qualidade de vida do paciente e dos familiares, mas muitas famílias não têm acesso a bons hospitais psiquiátricos, medicamentos ou terapias com profissionais especializados.
No caso de Nellie Bly, a corajosa jornalista que acompanharemos em “Dez dias em um hospício”, o problema não está apenas nos maus-tratos causados aos pacientes, mas em uma falta de conhecimento em relação aos transtornos, levando pessoas típicas (ou sem transtornos graves) a serem internadas, medicadas e maltratadas a ponto de desenvolverem fobias, manias e distúrbios, como no caso de “Bicho de Sete Cabeças”, filme nacional de 2001 estrelado por Rodrigo Santoro e baseado na autobiografia de Austregésilo Carrano Bueno, ou a história também baseada em fatos reais de “Um Estranho no Ninho”, com a atuação de Jack Nicholson, lançado em 1976.
Existe uma luta antimanicomial cujo princípio é que o ambiente pode – ao menos enquanto não é aprimorado – piorar ou gerar novos transtornos para os pacientes, causando ainda mais sofrimento. Ao mesmo tempo, após o encerramento de diversos hospitais públicos, não é incomum encontrar pessoas precisando de auxílio psiquiátrico morando nas ruas e buscando outras formas disfuncionais de aliviar sua dor, como o uso de drogas ou suicídio.
Esperamos que este livro ajude a demonstrar que violência e negligência não ajudam na melhora do quadro ou bem-estar dos pacientes, e que as famílias convivendo com atípicos precisam de auxílio constante e meticuloso do governo para poderem, pacientes e familiares, viver mais satisfatoriamente.
Marina Avila, Editora da Wish
Desde que minhas experiências no Hospício da Ilha de Blackwell foram publicadas no World, tenho recebido centenas de cartas sobre o assunto. A edição contendo a minha história esgotou faz tempo, e tenho tentado fazê-la ser republicada na forma de um livro para satisfazer as centenas de pessoas que ainda pedem uma cópia.
Fico feliz em poder declarar que, como resultado da minha visita ao hospício e das revelações daí advindas, a cidade de Nova York destinou US $ 1.000.000 a mais por ano para cuidar dos insanos. Portanto, tenho pelo menos a satisfação de saber que os pobres infelizes serão mais bem-cuidados por causa do meu trabalho.
Nellie Bly
No dia 22 de setembro, o World perguntou se eu conseguiria fazer com que me internassem em um dos hospícios de Nova York, com o objetivo de escrever uma narrativa simples e clara sobre o tratamento dado aos pacientes lá confinados, os métodos de administração etc. Eu teria a coragem de enfrentar a provação exigida por tal missão? Eu seria capaz de fingir as características da insanidade de forma a enganar os médicos e viver uma semana entre os insanos sem as autoridades do lugar descobrirem que eu era apenas uma forasteira tomando notas? Respondi acreditar que sim. Tinha certa fé na minha habilidade como atriz e pensei que poderia fingir insanidade por tempo bastante para completar qualquer missão confiada a mim. Eu conseguiria passar uma semana na ala dos insanos na Ilha de Blackwell? Respondi que sim. E consegui.
Minhas instruções eram simplesmente continuar com meu trabalho habitual até sentir que estava pronta. Também, eu deveria narrar fielmente as experiências pelas quais passaria e, uma vez dentro dos muros do hospício, descobrir e descrever seu funcionamento interno, sempre tão bem escondido do conhecimento público, tanto pelos enfermeiros vestidos de branco quanto por barras e parafusos.
― Não pedimos que você vá até lá com o objetivo de fazer revelações sensacionalistas. Descreva as coisas como as encontrar, boas ou más, elogie ou acuse como achar melhor, e diga sempre a verdade. Mas tenho medo desse seu sorriso crônico ― disse o editor.
― Não vou mais sorrir ― respondi, e fui executar minha missão delicada e, como descobri mais tarde, difícil.
Se entrasse no hospício, o que mal esperava conseguir, eu não imaginaria que minhas experiências viessem a conter algo mais do que uma simples narrativa da vida naquele lugar. Não achava possível que tal instituição pudesse ser mal administrada e que crueldades existissem sob seu teto. Sempre tive o desejo de conhecer a vida no hospício com mais detalhes ― um desejo de ser convencida de que as mais desamparadas criaturas de Deus, os insanos, eram tratadas com gentileza e decência. Considerava exageradas ou fictícias as muitas histórias que havia lido sobre abuso nessas instituições, mas ainda tinha o desejo latente de saber a verdade.
Eu estremecia ao pensar no quanto os insanos estavam sob o poder de seus guardiões, e como alguém poderia chorar e implorar para ser libertado, tudo em vão, se tais guardiões não quisessem fazê-lo. Ansiosa, aceitei a missão de conhecer o funcionamento interno do Hospício da Ilha de Blackwell.
― Como você vai me tirar de lá depois que eu entrar? ― perguntei ao meu editor.
― Não sei ― ele respondeu. ― Mas vamos tirá-la mesmo que precisemos dizer quem você é, e com qual objetivo fingiu insanidade. É só entrar.
Eu não tinha muita fé na minha habilidade de enganar os especialistas em insanidade, e acho que meu editor tinha menos ainda.
Todos os preparativos para a minha provação foram deixados sob a minha responsabilidade. Apenas uma coisa foi decidida: eu prosseguiria sob o pseudônimo de Nellie Brown, cujas iniciais eram as mesmas do meu próprio nome e estavam bordadas na minha vestimenta, de forma a não haver dificuldade em acompanhar meus movimentos e me ajudar em qualquer complicação ou perigo que eu pudesse enfrentar. Havia maneiras de entrar na ala dos insanos, mas eu não as conhecia. Poderia adotar um dos dois caminhos: fingir insanidade na casa de amigos e deixar que me internassem por decisão de dois médicos competentes, ou alcançar meu objetivo através dos tribunais policiais.
Refletindo, pensei ser mais sensato não me impor aos meus amigos nem pedir a médicos de boa índole que me ajudassem em meu propósito. Além do mais, para chegar à Ilha de Blackwell, meus amigos teriam de fingir pobreza e, infelizmente para o que eu tinha e pretendia, meu conhecimento sobre as dificuldades dos pobres, exceto pela minha própria pobreza, era muito superficial. Por isso, decidi o plano que me levou ao cumprimento bem-sucedido da minha missão.
Consegui entrar na ala de insanos na Ilha de Blackwell, onde passei dez dias e dez noites e tive uma experiência da qual nunca esquecerei. Assumi a tarefa de representar o papel de uma pobre e infeliz louca e senti ser meu dever não fugir de nenhum dos resultados desagradáveis que viriam. Tornei-me uma das pessoas na ala dos insanos por aquele período, tive muitas experiências, vi e ouvi muito do tratamento concedido a essa classe indefesa de nossa população, e, quando havia visto e ouvido o suficiente, minha libertação foi prontamente garantida. Saí da ala dos insanos com prazer e arrependimento ― prazer por poder mais uma vez aproveitar a brisa fresca do céu. Arrependimento por não poder trazer comigo algumas das mulheres desafortunadas que viveram e sofreram comigo, e as quais, estou convencida, são tão sãs quanto eu era e sou agora.
Mas deixe-me dizer uma coisa: do momento em que entrei na ala dos insanos na Ilha, não fiz nenhuma tentativa de continuar a cumprir o papel de insana. Falei e agi da mesma forma como faço no dia a dia. No entanto, é estranho dizer que, quanto mais falava e agia como sã, mais louca todos pensavam que eu era, exceto um médico, cuja bondade e modos gentis não esquecerei tão cedo.
]]>Começou em um Clube de Senhoras em Londres, numa tarde de fevereiro — um clube desconfortável e uma tarde infeliz —, quando a Sra. Wilkins, que viera de Hampstead para fazer compras e fora almoçar em seu clube, pegou o Times da mesa na sala de fumantes e, passando o olhar desinteressado pela seção de Cartas dos Leitores, viu o seguinte:
Para Quem Gosta de Glicínias e Sol. Pequeno castelo medieval italiano às margens do Mediterrâneo, mobiliado, vago para o mês de abril. A criadagem necessária permanecerá. Z, Caixa-postal 1.000, The Times.
Foi ali que começou; no entanto, como em muitos outros casos, não era possível saber disso na hora.
A Sra. Wilkins não tinha a menor ideia de que ali, naquele exato momento, seu mês de abril daquele ano havia sido definido, e largou o jornal com um gesto irritado e resignado, foi até a janela e olhou com melancolia para a rua encharcada.
Não eram para ela os castelos medievais, nem mesmo aqueles especificamente descritos como pequenos. Não eram para ela as margens do Mediterrâneo em abril, as glicínias e o sol. Esses prazeres eram apenas para os ricos. No entanto, o anúncio tinha sido dirigido a pessoas que gostam dessas coisas, então, de alguma forma, também se dirigia a ela, pois certamente as apreciava; mais do que qualquer um sabia, mais do que alguma vez admitira. Mas ela era pobre. A única coisa que possuía de sua no mundo eram apenas noventa libras, economizadas ano a ano, libra por libra, cuidadosamente retiradas do seu orçamento para vestuário. Ela havia juntado essa quantia por sugestão do marido, como garantia para os dias de tempestade. Seu orçamento para vestuário, dado pelo pai, era de 100 libras por ano, então as roupas da Sra. Wilkins eram o que seu marido, que a incentivava a economizar, chamava de modestas e apropriadas, e a figura dela, para eles, quando ao menos falavam dela, o que quase nunca ocorria por ela ser bastante irrisória, era perfeita.
O Sr. Wilkins, um advogado, incentivava a economia, exceto a ramificação dela que se intrometia na sua comida. A isso, não chamava de economia, mas de péssima administração doméstica. Mas para a economia que, como uma traça, penetrava nas roupas da Sra. Wilkins e as arruinava, ele era só elogios.
— Nunca se sabe quando a tempestade virá — dizia ele —, e você vai ficar muito contente ao se ver com um pé-de-meia. Na verdade, nós dois ficaremos.
Olhando pela janela do clube para a Shaftesbury Avenue — seu clube era econômico, mas conveniente para Hampstead, onde ela morava, e para Shoolbred’s, onde fazia compras —, a Sra. Wilkins, quedando-se ali por algum tempo muito melancólica, com a mente repleta de visões do Mediterrâneo em abril, das glicínias e das oportunidades invejáveis dos ricos, enquanto seus olhos de fato observavam a chuva escura e horrenda que caía constante nos guarda-chuvas apressados e espirrava nos ônibus, de repente se pôs a imaginar se aquela não seria a tempestade para a qual Mellersh — Mellersh era o Sr. Wilkins — tanto a incentivara a se preparar, e se sair daquele clima rumo ao pequeno castelo medieval não seria o que a Providência tinha planejado o tempo todo que ela fizesse com suas economias. Parte de suas economias, é claro; talvez até uma bem pequena. O castelo, por ser medieval, também podia estar em ruínas, e as ruínas sem dúvida eram baratas. Ela não se importaria nem um pouco com isso, porque não se pagava por ruínas que já existiam, pelo contrário — ao reduzir o preço a pagar, na verdade eram as ruínas que pagavam para você. Mas que absurdo pensar nisso...
Ela se afastou da janela com o mesmo gesto de irritação e resignação com que largara o Times, atravessou a sala rumo à porta com a intenção de pegar sua capa e seu guarda-chuva, abrir caminho dentro de um dos ônibus superlotados e ir à Shoolbred’s a caminho de casa para comprar algumas solhas para o jantar de Mellersh — ele não era de comer peixe e gostava apenas do tipo linguado, exceto salmão —, quando viu a Sra. Arbuthnot, uma mulher que ela conhecia de vista e também morava em Hampstead e pertencia ao clube, sentada à mesa no meio da sala onde ficavam os jornais e as revistas, absorta, por sua vez, na primeira página do Times.
A Sra. Wilkins nunca havia conversado com a Sra. Arbuthnot, que pertencia a um dos vários grupos da igreja e analisava, classificava, dividia e registrava os pobres, enquanto ela e Mellersh, quando saíam, iam às festas de pintores impressionistas, que eram muitos em Hampstead. Mellersh tinha uma irmã que se casara com um deles e morava no Heath e, por causa dessa ligação, a Sra. Wilkins foi arrastada para um círculo que não lhe era nem um pouco natural e aprendeu a temer quadros. Tinha que comentar alguma coisa sobre eles, mas não sabia o que dizer. Costumava murmurar “maravilhoso” e sentir que não era suficiente. Mas ninguém se importava. Ninguém ouvia. Ninguém nem sequer notava a Sra. Wilkins. Ela era o tipo de pessoa que não é notada nos eventos. Suas roupas, afligidas pela poupança, a deixavam praticamente invisível; seu rosto não era arrebatador; sua conversa era reticente; ela era tímida. E se as roupas, o rosto e a conversa de alguém são insignificantes, pensou a Sra. Wilkins, reconhecendo suas limitações, o que restava nas festas para essa pessoa?
Além disso, ela estava sempre com Wilkins, aquele homem barbeado e de boa aparência, que, só por comparecer a uma festa, já conferia a ela ótimos ares. Wilkins era muito respeitável. Era conhecido por ser tido em alta conta por seus sócios seniores. O círculo de sua irmã o admirava. Ele dava pareceres adequadamente inteligentes sobre arte e artistas. Era incisivo; era prudente; nunca dizia uma palavra a mais nem a menos que o suficiente. Ele dava a impressão de manter uma cópia de tudo o que dizia e era tão obviamente confiável que com frequência acontecia de as pessoas que o conheciam nessas festas ficarem insatisfeitas com os próprios advogados e, depois de um período de inquietação, se livrarem deles e procurarem Wilkins.
Naturalmente, a Sra. Wilkins era ofuscada.
— Ela — dizia a irmã dele, com um quê de crítica, compreensão e conclusão em seu tom — devia ficar em casa.
Mas Wilkins não podia deixar a esposa em casa. Ele era advogado de família, e todos eles têm esposas e as exibem. Durante a semana, ia com ela a festas e, aos domingos, à igreja. Sendo ainda relativamente jovem — tinha trinta e nove anos — e interessado em velhinhas, das quais ainda não havia muitas em seu escritório, não podia se dar ao luxo de não ir à igreja, e era de lá que a Sra. Wilkins conhecia a Sra. Arbuthnot, embora nunca tivessem se falado.
Ela a via organizar os filhos dos pobres em bancos. Entrava à frente da procissão da Escola Dominical, exatamente cinco minutos antes do coral, colocava seus meninos e meninas impecavelmente sentados em seus devidos lugares, depois apoiados em seus joelhinhos em sua oração preliminar e por fim de pé outra vez quando, ao som do órgão, a porta da sacristia se abria, e o coral e o sacerdote, carregados com as litanias e os mandamentos que deveriam pregar, de lá emergiam. Ela exibia uma expressão triste, embora fosse claramente eficiente. A combinação costumava deixar a Sra. Wilkins reflexiva, pois, nos dias que ela só conseguia comprar linguado, Mellersh lhe dizia que, se uma pessoa fosse eficiente, não ficaria deprimida, e quem faz bem o seu trabalho se torna automaticamente alegre e vibrante.
Não havia nada de alegre e vibrante na Sra. Arbuthnot, embora muito do seu comportamento com as crianças da Escola Dominical fosse automático; mas, quando a Sra. Wilkins, virando-se da janela, a viu no clube, não havia nada de automático nela; em vez disso, olhava fixamente para um trecho da primeira página do Times, segurando o jornal, imóvel, os olhos parados. Ela estava apenas olhando; e seu rosto, como sempre, era o de uma madona paciente e decepcionada.
A Sra. Wilkins a observou por um minuto, tentando criar coragem para falar com ela. Queria perguntar se tinha visto o anúncio. Não sabia por que queria perguntar isso a ela, mas queria. Que estúpido não conseguir falar com ela. A mulher parecia tão gentil. Parecia tão infeliz. Por que duas pessoas infelizes não podiam animar uma à outra, no decorrer desse negócio enfadonho que é a vida, conversando um pouco — uma conversa natural e verdadeira sobre o que sentiam, do que gostariam e que esperanças ainda tentavam nutrir? Ela não conseguia deixar de achar que a Sra. Arbuthnot também estava lendo aquele mesmo anúncio. Os olhos dela estavam bem naquela parte do jornal. Será que ela também imaginava como seria — a cor, o cheiro, a luz, o mar batendo suavemente entre as pedrinhas quentes? Cor, cheiro, luz, mar; em vez da Shaftesbury Avenue, dos ônibus molhados, da seção de peixes na Shoolbred’s, do metrô de Hampstead e do jantar, e a mesma coisa amanhã, e depois de amanhã e sempre o mesmo...
De repente, a Sra. Wilkins se viu inclinada sobre a mesa.
— A senhora está lendo sobre o castelo medieval e as glicínias? — ouviu-se perguntar.
Naturalmente, a Sra. Arbuthnot ficou surpresa; mas não tanto quanto a própria Sra. Wilkins por perguntar.
Até onde a Sra. Arbuthnot sabia, ainda não tinha visto a figura prosaica, emaciada e vagamente composta, sentada à sua frente, com seu rostinho sardento e os grandes olhos cinzentos quase desaparecendo sob um chapéu impermeável amassado, e por isso olhou para ela por um momento sem responder. Ela estava lendo sobre o castelo medieval e as glicínias, ou melhor, tinha lido sobre ele dez minutos antes e desde então se perdera em sonhos — de luz, cor, cheiro, o mar batendo suavemente nas pedrinhas quentes...
— Por que a pergunta? — disse com a voz grave, pois seu treinamento com os pobres a tornara grave e paciente.
A Sra. Wilkins corou e pareceu excessivamente tímida e assustada.
— Ah, só porque eu também vi e pensei que talvez... de alguma forma... — ela gaguejou.
Por hábito, enquanto olhava pensativamente para a Sra. Wilkins, a Sra. Arbuthnot, acostumada a colocar as pessoas em listas e divisões, imediatamente considerou qual rubrica, supondo que tivesse de classificá-la, lhe seria mais adequada.
— E eu a conheço de vista — prosseguiu a Sra. Wilkins, que, como todos os tímidos, quando começava, não conseguia parar, assustando-se cada vez mais com suas palavras ao ouvir o mero som do que acabara de dizer. — Todo domingo... vejo a senhora todo domingo na igreja...
— Na igreja? — ecoou a Sra. Arbuthnot.
— E isso parece uma coisa maravilhosa... esse anúncio sobre as glicínias... e...
A Sra. Wilkins, que devia ter pelo menos trinta anos, parou e se contorceu na cadeira, com o movimento de uma colegial desajeitada e constrangida.
— Parece tão maravilhoso — prosseguiu numa espécie de explosão — e... está um dia tão horrível...
E então ela permaneceu sentada olhando para a Sra. Arbuthnot com os olhos de um cachorro preso.
Essa pobrezinha, pensou a Sra. Arbuthnot, que dedicara a vida a ajudar e acalmar, precisa de conselhos.
Por isso, ela se preparou pacientemente para dá-los.
— Se você me vê na igreja — disse ela, gentil e atenciosa —, imagino que também more em Hampstead?
— Ah, sim — disse a Sra. Wilkins. E repetiu, com a cabeça sobre o pescoço comprido e fino pendendo um pouco, como se a lembrança de Hampstead a oprimisse: — Ah, sim.
— Onde? — perguntou a Sra. Arbuthnot, que, quando era necessário aconselhamento, naturalmente começava primeiro a coletar fatos.
Mas a Sra. Wilkins, colocando a mão de maneira suave e carinhosa na parte do Times onde estava o anúncio, como se as simples palavras impressas fossem preciosas, apenas disse:
— Talvez seja por essa razão que isso parece tão maravilhoso.
— Não... acho que é maravilhoso de qualquer maneira — disse a Sra. Arbuthnot, esquecendo-se dos fatos e suspirando de leve.
— Então a senhora o estava lendo?
— Sim — respondeu a Sra. Arbuthnot, com os olhos sonhadores outra vez.
— Não seria maravilhoso? — murmurou a Sra. Wilkins.
— Maravilhoso. — O rosto da Sra. Arbuthnot, que tinha se iluminado, desvaneceu-se novamente em paciência. — Muito maravilhoso. Mas não adianta perder tempo pensando em tais coisas.
— Ah, adianta. — Foi a resposta rápida e surpreendente da Sra. Wilkins; surpreendente porque era muito incomum a todo o resto que lhe compunha: o casaco e a saia sem personalidade, o chapéu amarrotado, a mecha indecisa de cabelo solto. — Pensar nisso por si só já vale a pena... uma diferença tão grande de Hampstead... e às vezes eu acredito... eu realmente acredito... que, se alguém pensa o suficiente, consegue as coisas.
A Sra. Arbuthnot a observou pacientemente. Em que categoria a colocaria se precisasse?
— Talvez — disse ela, inclinando-se um pouco para a frente —, você me diga seu nome. Se vamos ser amigas — ela abriu seu sorriso grave —, como espero que sejamos, é melhor começarmos do começo.
— Ah, sim... que gentileza sua. Sou a Sra. Wilkins. Não espero — acrescentou, corando, pois a Sra. Arbuthnot não disse nada — que isso signifique alguma coisa para a senhora. Às vezes parece... parece não significar nada para mim também. Mas — Ela olhou em volta como se procurasse ajuda — sou a Sra. Wilkins.
Ela não gostava do nome. Era um nome pequeno e medíocre, com uma espécie de voltinha jocosa no fim, pensava, como a espiral ascendente da cauda de um cãozinho pug. No entanto, lá estava. Não havia o que fazer. Wilkins ela era e Wilkins permaneceria; e embora o marido a encorajasse a responder Sra. Mellersh-Wilkins em todas as ocasiões, ela só o fazia quando ele estava ouvindo, pois achava que Mellersh tornava Wilkins pior, enfatizando-o do mesmo modo que Chatsworth nos portões de uma vila enfatiza a vila.
Na primeira vez em que ele sugeriu que ela acrescentasse Mellersh, ela se opusera usando esse argumento e, após uma pausa — Mellersh era prudente demais para falar, exceto após uma pausa, durante a qual, provavelmente, fazia uma cuidadosa cópia mental da observação a ser feita —, disse, muito descontente, “Mas eu não sou uma vila”, e a olhou com o olhar de quem espera, talvez pela centésima vez, não ter se casado com uma idiota.
Claro que ele não era uma vila, garantiu-lhe a Sra. Wilkins; ela nunca dissera isso; não havia sequer sonhado em dizer... estava apenas pensando...
Quanto mais ela explicava, mais fervorosa se tornava a esperança de Mellersh, já tão comum à época, pois ele estava casado havia dois anos, de que, por sorte, não tivesse se casado com uma idiota; e eles tiveram uma briga longa, se é que se pode chamar de briga uma que é conduzida por um silêncio digno de um lado e sinceras desculpas do outro, sem importar se a Sra. Wilkins tivera ou não a intenção de sugerir que o Sr. Wilkins era uma vila.
Acredito, pensou ela quando a briga enfim terminou, o que levou um bom tempo, que qualquer um discutiria por qualquer coisa quando não se separam nem por um único dia durante dois anos inteiros. O que nós dois precisamos é de umas férias.
Tentando se explicar para a Sra. Arbuthnot, ela prosseguiu:
— Meu marido é advogado. Ele... — Ela procurou algo esclarecedor que pudesse dizer sobre Mellersh e encontrou: — Ele é muito bonito.
— Bem — respondeu a Sra. Arbuthnot —, isso deve ser um grande prazer para a senhora.
— Por quê? — perguntou a Sra. Wilkins.
— Porque sim — disse a Sra. Arbuthnot, um pouco surpresa, pois suas constantes interações com os pobres a acostumaram a ter seus pronunciamentos acatados sem questionamentos —, porque a beleza, a formosura, é uma dádiva como qualquer outra, e se usada adequadamente...
Ela deixou a frase inacabada. Os grandes olhos cinzentos da Sra. Wilkins estavam fixos nela, e de repente pareceu à Sra. Arbuthnot que talvez ela estivesse se acostumando ao hábito da exposição, e uma exposição como a das governantas, que tinham uma audiência que não podia discordar delas, que teria medo de interromper se quisesse, que não soubesse das coisas e que estava, de fato, sob o seu controle.
Mas a Sra. Wilkins não estava ouvindo; pois naquele momento, por mais absurdo que parecesse, uma imagem surgiu em sua mente, e havia duas figuras sentadas juntas sob uma grande glicínia que se estendia pelos galhos de uma árvore que ela não conhecia, e as figuras eram ela mesma e a Sra. Arbuthnot — ela as viu —, ela as via. E atrás delas, brilhavam ao sol as velhas paredes cinza — o castelo medieval, ela o viu —, elas estavam lá...
Por isso, ela olhava para a Sra. Arbuthnot e não ouvia uma palavra que a mulher dizia. E a Sra. Arbuthnot também encarava a Sra. Wilkins, capturada pela expressão em seu rosto, que foi tomada pela excitação do que via e se tornava tão luminosa e trêmula quanto a água sob a luz do sol quando agitada por uma rajada de vento. Nesse momento, se estivesse em uma festa, a Sra. Wilkins teria sido observada com interesse.
Elas se encaravam; a Sra. Arbuthnot surpresa, com um ar inquisitivo, e a Sra. Wilkins com os olhos de alguém a quem fora feita uma revelação. É claro. Essa era a solução. Ela própria, por si só, não poderia arcar com os custos e, mesmo que pudesse, não conseguiria chegar até lá sozinha; mas ela e a Sra. Arbuthnot juntas...
Ela se inclinou sobre a mesa e sussurrou:
— Por que não tentamos ir?
A Sra. Arbuthnot arregalou ainda mais os olhos.
— Ir? — repetiu.
— Sim — disse a Sra. Wilkins, ainda como se estivesse com medo de que alguém a ouvisse. — Não apenas sentar aqui, dizer “Que maravilha” e depois voltar para casa em Hampstead sem ter movido um dedo... voltar para casa como sempre e cuidar do jantar e do peixe, como fazemos há anos e anos e continuaremos a fazer por anos e anos. Na verdade — disse a Sra. Wilkins, corando até a raiz dos cabelos, pois que estava dizendo, o que saía como um desabafo, a assustava, mas mesmo assim não podia parar —, não vejo fim para isso. Não há fim. Então tem que haver uma pausa, tem que haver intervalos... para o bem de todos. Ora, seria realmente altruísta viajar e ser feliz um pouco, porque voltaríamos muito melhores. Veja bem, depois de um tempo, todo mundo precisa de férias.
— Mas... o que você quer dizer com ir? — perguntou a Sra. Arbuthnot.
— Pegar — disse a Sra. Wilkins.
— Pegar?
— Alugar. Contratar. Aproveitar.
— Mas... você quer dizer você e eu?
— Sim. Nós duas. Dividir. Então custaria apenas metade, e a senhora parece tão... a senhora parece querer isso tanto quanto eu... como se precisasse de um descanso... de que algo feliz lhe acontecesse.
— Ora, mas nós não nos conhecemos.
— Mas pense quão bem nos conheceríamos se viajássemos juntas por um mês! E eu economizei para os dias de tempestade... veja só...
Ela está desequilibrada, pensou a Sra. Arbuthnot; no entanto, se sentia estranhamente empolgada.
— Pense em fugir por um mês inteiro... de tudo... para o paraíso...
Ela não devia dizer coisas assim, pensou a Sra. Arbuthnot. O vigário... Contudo, seria de fato maravilhoso ter um descanso, uma trégua.
O hábito, porém, a centrou novamente; e anos de relações com os pobres a fizeram dizer com a ligeira superioridade compadecida do explicador:
— Mas, veja bem, o paraíso não é outro lugar. É aqui e agora. É o que nos ensinam.
Ela ficou muito séria, como sempre fazia quando tentava pacientemente ajudar e instruir os pobres.
— O paraíso está dentro de nós — disse com sua voz baixa e gentil. — Quem nos diz é a maior de todas as autoridades. E você sabe o que está escrito sobre as semelhanças, não sabe...?
— Ah, sim, eu sei — interrompeu a Sra. Wilkins, impaciente.
— As semelhanças entre o paraíso e o lar — continuou a Sra. Arbuthnot, que estava acostumada a terminar suas frases. — O paraíso é a nossa casa.
— Não é — disse a Sra. Wilkins, outra vez de forma surpreendente.
A Sra. Arbuthnot ficou chocada. Então falou com gentileza:
— Ah, mas claro que é. Basta escolhermos e fazermos ser.
— Eu escolho, faço ser, e ainda assim não é — insistiu a Sra. Wilkins.
Então a Sra. Arbuthnot se calou, pois às vezes também tinha dúvidas sobre os lares. Ela ficou sentada, olhando inquieta para a Sra. Wilkins, sentindo cada vez mais a necessidade urgente de classificá-la. Ela achava que, se ao menos conseguisse classificar a Sra. Wilkins, colocá-la em segurança sob a rubrica certa, recuperaria o próprio equilíbrio, que parecia muito estranhamente pender todo para um lado. Pois ela também não tirava férias havia anos, e aquele anúncio, quando ela o viu, a fez sonhar; além disso, a empolgação da Sra. Wilkins com aquilo era contagiante e, enquanto ouvia aquela conversa impetuosa e estranha e observava o rosto iluminado da outra mulher, tinha a sensação de que estava sendo despertada do sono.
Sem dúvida, a Sra. Wilkins era desequilibrada, mas a Sra. Arbuthnot já havia encontrado desequilibrados antes — na verdade, ela sempre os encontrava —, e eles não afetavam de forma alguma sua própria estabilidade; ao passo que aquela ali a fazia sentir-se vacilante, quase como se tirar uma folga e viajar para longe, longe de sua bússola composta por Deus, Marido, Lar e Deveres — ela não achava que a Sra. Wilkins planejasse que o Sr. Wilkins fosse também —, e ao menos uma vez ser feliz fosse bom e desejável. O que é claro que não era; certamente não era. Ela também tinha um pé-de-meia, que investira aos poucos no Banco de Poupança dos Correios, mas supor que ela seria capaz de esquecer seus deveres a ponto de resgatar o dinheiro e gastá-lo consigo mesma era certamente absurdo. Claro que ela não poderia, nunca faria uma coisa dessas, não é? Sem dúvida não, jamais conseguiria esquecer seus pobres, esquecer a miséria e a doença assim de todo, não é? Sem dúvida, uma viagem à Itália seria extraordinariamente deliciosa, mas havia muitas coisas deliciosas que uma pessoa gostaria de fazer, mas por que então ela era agraciada com força se não para ajudá-la a não fazê-las?
Para a Sra. Arbuthnot, os quatro grandes fatos da vida eram imutáveis como os pontos cardeais: Deus, Marido, Lar, Deveres. Ela se apoiara nesses fatos anos antes, depois de um período de muito sofrimento, a cabeça repousada neles como se fossem um travesseiro; e tinha verdadeiro pavor de ser despertada dessa condição tão simples e confortável. Por isso, procurava com dedicação uma rubrica sob a qual colocar a Sra. Wilkins e, dessa maneira, iluminar e estabilizar a própria mente. Sentada ali, olhando-a inquieta após sua última observação e sentindo-se ficar cada vez mais desequilibrada e infectada, ela decidiu pro tempore, como dizia o vigário nas reuniões, colocá-la sob a rubrica Nervos. Era possível que ela entrasse diretamente na categoria Histeria, que muitas vezes era apenas a antecâmara da Loucura, mas a Sra. Arbuthnot aprendera a não se apressar em colocar as pessoas em suas categorias definitivas, tendo em mais de uma ocasião descoberto com consternação que cometera um erro; e tinha sido muito difícil realocá-las, e ela ficara devastada pelo mais terrível remorso.
Sim. Nervos. Provavelmente ela não tinha o costume de trabalhar para os outros, pensou a Sra. Arbuthnot; nenhum trabalho que a trouxesse para fora de si. Era evidente que estava sem leme — levada por rajadas, por impulsos. Era quase certo que Nervos era a sua categoria, ou seria em breve, se ninguém a ajudasse. Coitadinha, pensou a Sra. Arbuthnot, seu próprio equilíbrio voltando de mãos dadas com sua compaixão. Por causa da mesa, ela não conseguia ver o comprimento das pernas da Sra. Wilkins. Tudo o que via era o rosto pequeno, ansioso, tímido, os ombros magros e, em seus olhos, a expressão de desejo infantil por algo que tinha certeza que a faria feliz. Não; essas coisas tão fugazes não faziam as pessoas felizes. A Sra. Arbuthnot havia descoberto em sua longa vida com Frederick — seu marido, com quem se casara aos vinte anos e ainda não completara trinta e três — onde se encontram as verdadeiras alegrias. Elas só são encontradas, ela agora sabia, quando se vive para os outros a cada dia, a cada hora; elas só são encontradas — não tinha ela tantas vezes levado suas decepções e seu desânimo até lá, de onde saíra consolada? — aos pés de Deus.
Frederick tinha sido o tipo de marido cuja esposa logo se refugia aos pés de Deus. De uma coisa à outra, havia sido um passo pequeno, porém doloroso. Parecia-lhe pequeno em retrospecto, mas de fato consumira todo o primeiro ano de casamento, e cada centímetro do caminho havia sido uma luta, e cada centímetro daquilo havia sido manchado, ela sentira na época, com o sangue de seu coração. Tudo isso estava acabado agora. Havia muito, encontrara a paz. E Frederick, de noivo apaixonado e amado, de jovem e adorado marido, tornara-se o segundo, atrás apenas de Deus, em sua lista de deveres e tolerâncias. Ali ele permanecia, o segundo em importância, uma coisa sem sangue, tornada pálida pelas orações dela. Durante anos, ela só conseguira ser feliz esquecendo a felicidade. Queria permanecer assim. Queria calar tudo o que a lembrasse de coisas bonitas, que pudessem fazê-la ansiar outra vez, desejar...
— Eu gostaria muito de ser sua amiga — disse ela com sinceridade. — Por que não vai me visitar? Ou permita que eu vá até você? Sempre que tiver vontade de conversar. Vou lhe dar o meu endereço — ela procurou na bolsa — e então você não vai esquecer. — Ela encontrou um cartão e o estendeu.
A senhora Wilkins ignorou o cartão.
— É tão estranho — disse a Sra. Wilkins, como se não a tivesse ouvido. — Mas eu já nos vejo lá: nós duas, você e eu, no castelo medieval em abril.
A Sra. Arbuthnot voltou a ficar inquieta.
— Você vê? — perguntou, fazendo um esforço para manter o equilíbrio diante do olhar visionário daqueles brilhantes olhos cinzentos. — Vê?
— Você nunca vê as coisas numa espécie de flash antes que elas aconteçam? — perguntou a Sra. Wilkins.
— Nunca.
A Sra. Arbuthnot tentou sorrir; tentou abrir o sorriso compadecido, porém sábio e tolerante, com que estava acostumada a ouvir a opinião necessariamente tendenciosa e incompleta dos pobres. Mas não conseguiu. O sorriso estremeceu e sumiu.
— É claro — disse em voz baixa, quase como se estivesse com medo de que o vigário e o Banco de Poupança estivessem ouvindo —, seria muito bonito... muito bonito...
— Mesmo que fosse errado — disse a Sra. Wilkins —, seria apenas por um mês.
— Isso... — começou a Sra. Arbuthnot, bastante convicta de que aquele ponto de vista era completamente repreensível; mas a Sra. Wilkins a interrompeu antes que pudesse concluir:
— De qualquer forma, tenho certeza de que é errado continuar sendo boa por muito tempo, até a pessoa se tornar infeliz. E posso ver que você tem sido boa por muitos e muitos anos, porque parece tão infeliz — a Sra. Arbuthnot abriu a boca para protestar —, e eu... eu não faço nada além de obrigações, coisas para outras pessoas, desde menina, e não acredito que alguém me ame nem um pouco sequer... um pouco... o m-melhor... e eu desejo... ah, eu desejo... algo mais... algo mais...
Ela ia chorar? A Sra. Arbuthnot ficou extremamente desconfortável e compassiva. Torcia para que ela não começasse a chorar. Não ali. Não naquela sala hostil, com estranhos entrando e saindo.
Mas a Sra. Wilkins, depois de puxar agitadamente um lenço que não queria sair do bolso, enfim conseguiu apenas assoar o nariz e, piscando muito depressa uma ou duas vezes, olhou para a Sra. Arbuthnot com um ar trêmulo de desculpas meio humildes, meio assustadas e sorriu.
— Você acredita — sussurrou, tentando serenar a boca, claramente muito envergonhada de si mesma — que nunca falei assim com ninguém em toda a minha vida? Não consigo pensar, simplesmente não sei o que aconteceu comigo.
— É o anúncio — disse a Sra. Arbuthnot, assentindo com gravidade.
— Sim — concordou a Sra. Wilkins, secando furtivamente os olhos —, e nós duas sermos tão... — ela assoou o nariz novamente — infelizes.
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Alguns nomes da realeza estão predestinados ao infortúnio: na França, é o nome “Henry”. Henry I foi envenenado, Henry II foi morto em uma justa, Henry III e Henry IV foram assassinados. Quanto a Henry V, para quem o passado já é tão fatal, só Deus sabe o que o futuro lhe reserva.
Na Escócia, o nome azarado é “Stuart”. Robert I, fundador da raça, morreu aos 28 anos de uma doença prolongada. Robert II, o mais afortunado da família, foi obrigado a passar parte de sua vida não apenas aposentado, mas também no escuro, por causa de uma inflamação nos olhos que os deixava vermelhos como sangue. Robert III sucumbiu ao luto, à morte de um filho e à prisão de outro. James I foi esfaqueado por Graham na Abadia dos Monges Negros de Perth. James II foi morto no cerco de Roxburgh por um estilhaço de um canhão que explodiu. James III foi assassinado por um desconhecido em um moinho, onde se refugiou durante a Batalha de Sauchie. James IV, ferido por duas flechas e um golpe de alabarda, caiu no meio de seus nobres no campo de batalha de Flodden. James V morreu de tristeza pela perda de seus dois filhos e de remorso pela execução de Hamilton. James VI, destinado a unir na própria cabeça as duas coroas da Escócia e da Inglaterra, filho de um pai assassinado, levou uma existência melancólica e temerosa, entre o cadafalso de sua mãe, Mary Stuart, e o de seu filho, Charles I. Charles II passou uma parte da vida no exílio. James II morreu nele. O cavaleiro Saint-George, depois de ter sido proclamado Rei da Escócia como James VIII, e da Inglaterra e da Irlanda como James III, foi forçado a fugir, sem ter conseguido dar às suas armas nem mesmo o resplendor de uma derrota. Seu filho, Charles Edward, depois da escaramuça em Derby e da Batalha de Culloden, caçado de montanha em montanha, perseguido de rocha em rocha, nadando de costa a costa, foi capturado seminu por um navio francês e se dirigiu a Florença para morrer ali, sem que as cortes da Europa quisessem reconhecê-lo como soberano. Finalmente, seu irmão, Henry Benedict, o último herdeiro dos Stuarts, tendo vivido com uma pensão de três mil libras esterlinas, concedida a ele por George III, morreu completamente esquecido, deixando para a Casa de Hannover todas as joias da coroa que James II carregava quando atravessou para o continente em 1688; um reconhecimento tardio, mas completo, da legitimidade da família que sucedera a dele.
Em meio a essa corrida azarada, Mary Stuart era a preferida do infortúnio. Como Brantome disse sobre ela: “Quem desejar escrever sobre essa ilustre rainha da Escócia tem nela dois assuntos muito amplos: sua vida e sua morte”. Brantome a conhecera em uma das ocasiões mais tristes da sua vida: no momento em que ela estava abandonando a França e indo para a Escócia.
Foi no dia 9 de agosto de 1561, depois de ter perdido a mãe e o marido no mesmo ano, que Mary Stuart, Viúva da França e Rainha da Escócia aos dezenove anos, escoltada pelos tios, os cardeais Guise e Lorraine, pelo Duque e pela Duquesa de Guise, pelo Duque d’Aumale e por M. de Nemours, chegou a Calais, onde duas galeras estavam esperando para levá-la à Escócia, uma comandada por M. de Mevillon e a outra pelo Capitão Albize. Ela ficou seis dias na cidade. Finalmente, no dia 15 do mês, após o mais triste adieus a sua família, acompanhada pelos Messieurs d’Aumale, d’Elboeuf e Damville, com muitos nobres, dentre os quais Brantome e Chatelard, ela embarcou na galera de M. de Mevillon, que foi imediatamente lançada ao mar com a ajuda de remos, pois não havia vento suficiente para fazer uso das velas.
Mary Stuart estava então em plena floração de sua beleza, uma beleza ainda mais brilhante em seu traje de luto, uma beleza tão maravilhosa que derramava ao redor um encanto ao qual ninguém que ela desejava agradar conseguia escapar e que foi fatal para quase todo mundo. Nessa época, também, alguém a transformou no tema de uma música que, como até seus rivais confessavam, continha apenas a verdade. Foi escrita, diziam, por M. de Maison-Fleur, um cavaleiro igualmente talentoso com as armas e as letras. Aqui está:
Vê-se sob o branco adorno
Em grande luto e tristeza
Andar de um lado a outro
A deusa da beleza;
Nas mãos, tem o traço
De um fio desumano;
E o amor desvelado
Adeja em seu contorno
Disfarçando sua venda
Sob um véu enlutado
Onde se leem as palavras:
“Morrer ou ser capturado.”
Sim, neste momento, Mary Stuart, em seu profundo luto branco, estava mais adorável do que nunca. Grandes lágrimas escorriam pelo seu rosto quando, acenando um lenço, de pé no tombadilho, ela, que estava tão triste ao sair, se despedia daqueles que estavam tão tristes em permanecer.
Por fim, meia hora depois, o porto ficou para trás; a embarcação estava no mar. De repente, Mary ouviu gritos altos atrás de si. Um barco que se aproximava sob a pressão da vela, pela ignorância do piloto, tinha atingido uma rocha de tal maneira que rachou, e depois de ter tremido e gemido por um instante como alguém ferido, começou a ser engolido, em meio aos gritos aterrorizados de toda a tripulação. Mary, horrorizada, pálida, muda e imóvel, observou-o afundar gradualmente, enquanto a desafortunada tripulação, conforme a quilha desaparecia, subia nas longarinas e nos ovéns, para adiar a agonia da morte por alguns minutos. Por fim, quilha, longarinas, mastros, tudo tinha sido engolido pelas mandíbulas abertas do oceano. Por um instante restaram algumas partículas pretas, que desapareceram uma após a outra. Depois veio uma onda atrás da outra, e os espectadores dessa terrível tragédia, vendo o mar calmo e solitário como se nada tivesse acontecido, se perguntaram se não era uma visão que tinha aparecido e desaparecido para eles.
— Ai de mim! — lamentou Mary, sentando-se e apoiando os dois braços na popa da embarcação. — Que triste agouro para uma viagem tão triste! — Então, mais uma vez fixando o olhar no porto que se afastava, seus olhos secaram por um instante, aterrorizados, e começaram a umedecer novamente: — Adieu, França! — murmurou ela. — Adieu, França! — E durante cinco horas continuou assim, chorando e murmurando: — Adieu, França! Adieu, França!
A escuridão caiu enquanto ela ainda estava se lamentando. E então, quando a vista foi apagada e ela foi convocada para o jantar:
— É de fato agora, querida França — disse ela, se levantando —, que eu realmente a amo, já que a noite invejosa se amontoa luto após luto, lançando um manto negro diante dos meus olhos. Adieu, então, pela última vez, querida França, porque nunca mais voltarei a vê-la.
Com essas palavras, ela desceu, dizendo que era o oposto de Dido, que, depois da partida de Enéias, não tinha feito nada além de olhar para as ondas, enquanto ela, Mary, não conseguia tirar os olhos da terra. E todos se reuniram ao seu redor para tentar diverti-la e consolá-la. Mas ela, ficando mais triste e incapaz de reagir, sufocada pelas lágrimas, mal conseguia comer. Tendo uma cama preparada no convés de popa, mandou chamar o timoneiro e ordenou-lhe que, se ainda visse a terra ao raiar do dia, fosse acordá-la imediatamente. Nesse ponto, Mary foi favorecida: como o vento havia diminuído, quando a aurora chegou, o navio ainda estava à vista da França.
Foi uma grande alegria quando, acordada pelo timoneiro, que não se esqueceu da ordem que recebera, Mary se levantou no catre e, pela janela que tinha mandado abrir, viu mais uma vez a amada orla. Mas, às cinco horas da manhã, com o vento fortalecido, a embarcação rapidamente se afastou, de modo que a terra logo desapareceu por completo. Mary então se recostou na cama, pálida como a morte, murmurando mais uma vez:
— Adieu, França! Eu jamais voltarei a vê-la.
De fato, os anos mais felizes de sua vida tinham acabado de morrer nessa França pela qual ela tanto lamentava. Nascida em meio aos primeiros conflitos religiosos, ao lado da cabeceira do pai moribundo, o luto do berço se estendeu até seu túmulo, e sua estada na França fora um raio de sol em sua noite. Caluniada desde o nascimento, a notícia tão difundida no exterior era de que ela tinha uma má-formação e não conseguiria sobreviver e crescer. Até que, um dia, sua mãe, Mary de Guise, se cansou desses falsos boatos, a despiu e a mostrou nua para o embaixador inglês, que chegara, por parte de Henry VIII, para pedir sua mão em casamento para o Príncipe de Gales, ele próprio com apenas cinco anos de idade. Coroada aos nove meses pelo Cardeal Beaton, Arcebispo de St. Andrews, foi imediatamente escondida no Castelo de Stirling pela mãe, que tinha medo de uma perfídia do Rei da Inglaterra. Dois anos depois, deixando de considerar até mesmo essa fortaleza segura o suficiente, ela a transferiu para uma ilha no meio do Lago de Menteith, onde um priorado, o único prédio no local, ofereceu asilo para a criança real e para quatro meninas nascidas no mesmo ano, tendo, como ela, o doce nome Marie, em francês, que é um anagrama da palavra “aimer”, amor, e que, sem abandoná-la na boa ou na má sorte, eram chamadas de “Marys da Rainha”. Elas se chamavam Mary Livingston, Mary Fleming, Mary Seyton e Mary Beaton. Mary ficou nesse priorado até o Parlamento aprovar seu casamento com o delfim francês, filho de Henry II, e foi levada para o Castelo Dumbarton, para aguardar o momento da partida. Lá ela foi confiada a M. de Breze, enviado por Henry II para buscá-la. Tendo partido nas galeras francesas ancoradas na foz do Clyde, Mary, depois de ter sido fortemente perseguida pela frota inglesa, entrou no Porto de Brest em 15 de agosto de 1548, um ano após a morte de Francis I. Além das quatro Marys, as embarcações também levaram até a França três de seus irmãos naturais, entre os quais estava o prior de St. Andrews, James Stuart, que mais tarde renegou a fé católica e, com o título de regente e sob o nome de Conde de Murray, se tornou tão fatal para a pobre Mary. De Brest, Mary foi para St. Germain-en-Laye, onde Henry II, que acabara de ascender ao trono, a inundou com carícias e depois a mandou para um convento onde as herdeiras das casas francesas mais nobres eram criadas. Ali as qualidades felizes de Mary se desenvolveram. Nascida com o coração de uma mulher e a cabeça de um homem, Mary não apenas conquistou todas as realizações que faziam parte da educação de uma futura rainha, mas também o conhecimento real que é objeto dos verdadeiramente instruídos.
Assim, aos catorze anos, no Louvre, diante de Henry II, Catherine de Medici e toda a corte, ela proferiu um discurso em latim de sua própria composição, no qual afirmava que fazia bem às mulheres cultivar as letras e que é injusto e tirânico privar as flores de seus perfumes banindo as jovens de todas as preocupações domésticas. É possível imaginar como uma futura rainha, sustentando tal tese, seria bem-vinda na corte mais letrada e pedante da Europa. Entre a literatura de Rabelais e Marot se aproximando do declínio, e a de Ronsard e Montaigne atingindo o apogeu, Mary se tornou uma Rainha da poesia, feliz demais por nunca ter de usar outra coroa além daquela que Ronsard, Dubellay, Maison-Fleur e Brantome colocavam diariamente em sua cabeça. Mas ela era predestinada. Em meio às festas que um cavalheirismo em declínio tentava reviver, veio a justa fatal de Tournelles: Henry II, atingido por um estilhaço por não ter uma viseira, descansou antes da hora com seus ancestrais, e Mary Stuart ascendeu ao trono da França, onde, do luto por Henry, passou ao luto pela mãe e, do luto pela mãe, ao luto pelo marido. Mary sentiu esta última perda tanto como mulher quanto como poeta; seu coração explodiu em lágrimas amargas e harmonias melancólicas. Eis alguns versos que ela compôs naquela época:
Em meu triste e doce canto,
Com um tom de forte lamento,
Derramo um luto absoluto
De insólito aniquilamento,
E em suspiros penetrantes
Vão-se meus melhores anos.
Foi tal o sofrimento
E tão cruel destino,
Nem tão triste dor
De dama infortunada
Quem meu coração e meus olhos
Veem em caixão e féretro?
Quem em minha doce primavera
E flor da juventude,
Sente todas as chagas
de uma extrema tristeza,
E em nada se vê prazeroso
Mas se sente lamentoso e desejoso.
O que me fora prazeroso
Transformou-se em punição dura;
O dia mais luminoso
É para mim noite obscura,
E nada é mais estranho
Que de mim isso ser exigido.
Tenho no coração e nos olhos
Uma imagem, um retrato,
Que traduz o luto
Em meu pálido rosto
De tez violeta,
De que o amado é também feito.
Em minha saudade estrangeira,
Permaneço imóvel,
Mas procuro em vão mudar,
Porque minha dor é imutável,
Pois meu melhor e meu pior
São os mais desertos lugares.
Em alguma morada,
Seja em um bosque, em uma pradaria,
Seja na alvorada,
Ou ao entardecer,
Sem cessar meu coração sente
O pesar de um ausente.
Se por vezes em direção aos céus
Meu olhar se volta,
Os traços suaves de seus olhos
Eu vejo em uma nuvem;
Se eles se voltam para a água,
Veem como um túmulo.
Se estou em repouso,
Adormecida sobre meu lençol,
Ouço o que ele me diz,
Sinto que ele me toca;
Em labor, em calmaria,
Sempre perto de mim.
Não vejo outro objetivo,
Por mais belo que se apresente,
A quem seja o sujeito
Jamais meu coração consente;
Livre de perfeição
Para tal afeição.
Minha canção aqui encerra
Esse tão triste lamento
Cujo refrão será
Amor verdadeiro e sem fingimento,
Que nem a separação,
Trará diminuição.
— Nessa época — diz Brantome — era um prazer vê-la; pois a brancura de seu semblante e de seu véu competiam uma com a outra. Mas finalmente o artifício do véu cedeu, e a neve da palidez de seu rosto derrotou a outra. Pois foi assim que — acrescenta ele —, desde o momento em que ela se tornou viúva, eu sempre a via com sua tonalidade pálida, já que tive a honra de vê-la na França e na Escócia, onde ela precisava chegar dali a dezoito meses, para seu grande arrependimento, depois da viuvez, para pacificar seu reino, consideravelmente dividido por conflitos religiosos. Que desgraça! Ela não tinha desejo nem vontade de fazê-lo, e muitas vezes a ouvi dizer isso, com medo dessa jornada como da morte, pois ela preferia cem vezes morar na França como Rainha Viúva e disputar seu dote com Touraine e Poitou, a ir reinar em seu país selvagem. Mas seus tios, pelo menos alguns deles, não todos, a aconselharam, e até a instigaram, e se arrependeram profundamente desse erro.
Mary obedeceu, como vimos, e começou sua jornada sob tais auspícios que, ao perder de vista a terra, pensava que estava morrendo. Foi então que a poesia da sua alma encontrou expressão nesses famosos versos:
Adeus, agradável França,
Ó minha pátria
Mais querida,
Que alimentou minha tenra infância!
Adeus, França! deus, meus belos dias.
O navio que afasta nossos amores
Só levou de mim a metade;
Uma parte fica, ela te pertence;
Eu a confio à tua amizade,
Para que de você ela se lembre.
Essa parte de si mesma que Mary deixou na França era o corpo do jovem rei, que levara consigo toda a felicidade da pobre Mary para o túmulo.
Mary tinha apenas uma esperança: que a visão da frota inglesa obrigasse seu pequeno esquadrão a voltar, mas teve de cumprir seu destino. Nesse mesmo dia, um nevoeiro, uma ocorrência muito incomum no verão, se estendeu por todo o Canal e a fez escapar da frota, já que era uma névoa tão densa que não se podia ver da popa ao mastro. Durou todo o domingo, um dia após a partida, e não se dissolveu até o dia seguinte, segunda-feira, às oito da manhã. A pequena flotilha, que durante todo esse tempo navegava ao acaso, tinha se colocado entre tantos recifes que, se o nevoeiro durasse mais alguns minutos, a galera certamente teria batido em alguma rocha e teria perecido como a embarcação que eles viram ser engolida ao sair do porto. Mas, graças ao clareamento do nevoeiro, o piloto reconheceu a costa escocesa e, conduzindo os quatro barcos com grande habilidade por todos os perigos, no dia 20 de agosto entrou em Leith, onde não foi feita nenhuma preparação para a recepção da rainha. No entanto, ela mal havia chegado lá e as pessoas mais importantes da cidade se juntaram para cumprimentá-la. Enquanto isso, eles reuniram às pressas alguns pangarés miseráveis, com o arnês caindo aos pedaços, para levar a rainha até Edimburgo.
Ao ver isso, Mary não conseguiu evitar de chorar de novo; pensou nos esplêndidos palafréns e hackneys de seus cavaleiros e damas franceses e, nessa primeira visão, a Escócia se mostrava em toda a sua miséria. No dia seguinte, se mostraria em toda a sua selvageria.
Depois de passar uma noite no Palácio de Holyrood, “durante a qual”, diz Brantome, “quinhentos a seiscentos patifes da cidade, em vez de a deixarem dormir, foram lhe dar um cumprimento matinal selvagem com violinos desafinados e pequenas rabecas”, ela expressou o desejo de ouvir uma missa. Infelizmente, o povo de Edimburgo pertencia quase inteiramente à religião reformada. E, assim, furiosos porque a rainha deu essa prova de papismo em sua primeira aparição, eles entraram na igreja à força, armados com facas, paus e pedras, com a intenção de matar o pobre padre, seu capelão. Ele deixou o altar e se refugiou perto da rainha, enquanto o irmão de Mary, o Prior de St. Andrews, que, a partir de então, estava mais inclinado a ser um soldado do que um eclesiástico, pegou uma espada e, colocando-se entre o povo e a rainha, declarou que mataria com as próprias mãos o primeiro homem que desse mais um passo. Essa firmeza, combinada com o ar imponente e digno da rainha, controlou o zelo dos reformadores.
Como dissemos, Mary chegou no meio de todo o calor das primeiras guerras religiosas. Católica zelosa, como toda sua família pelo lado materno, ela inspirou os mais graves medos nos huguenotes. Além disso, havia um boato de que Mary, em vez de desembarcar em Leith, como fora obrigada pelo nevoeiro, deveria ter desembarcado em Aberdeen. Ali, dizia-se, ela teria encontrado o Conde de Huntly, um dos nobres que permaneciam fiéis à fé católica e que, ao lado da família de Hamilton, era o aliado mais próximo e mais poderoso da casa real. Apoiada por ele e por vinte mil soldados do norte, ela então teria marchado por Edimburgo e restabelecido a fé católica em toda a Escócia. Os eventos não demoraram a provar que essa acusação era falsa.
Como declaramos, Mary era muito apegada ao Prior de St. Andrews, filho de James V e de uma descendente nobre dos Condes de Mar, que tinha sido muito bonita na juventude e que, apesar do conhecido amor de James V por ela e pela criança resultante, tinha, no entanto, se casado com Lorde Douglas de Lochleven, com quem teve dois outros filhos, o mais velho chamado William e o mais novo, George, que eram, portanto, meios-irmãos da regente. Assim, logo que Mary voltou ao trono, ela restaurou ao Prior de St. Andrews o título de Conde de Mar, de seus ancestrais maternos e, como o de Conde de Murray havia expirado desde a morte do famoso Thomas Randolph, Mary, em sua amizade fraternal por James Stuart, se apressou a acrescentar esse título àqueles que já lhe tinha concedido.
Mas aqui surgiram dificuldades e complicações, pois o novo Conde de Murray, com seu caráter, não era homem de se contentar com um título estéril, enquanto as terras que eram de propriedade da coroa desde a extinção do ramo masculino dos antigos condes tinham sido gradualmente invadidas por vizinhos poderosos, entre os quais o famoso Conde de Huntly, a quem já mencionamos. O resultado foi que, como a rainha julgou que nessa região suas ordens provavelmente encontrariam oposição, sob o pretexto de visitar suas posses no norte, ela se colocou como chefe de um pequeno exército comandado pelo irmão, o Conde de Mar e Murray.
O Conde de Huntly foi o menos ludibriado pelo aparente pretexto dessa expedição, pois seu filho, John Gordon, por algum abuso de poder que cometeu, tinha acabado de ser condenado a uma prisão temporária. Não obstante, ele fez todas as submissões possíveis à rainha, enviando mensageiros para convidá-la a descansar em seu castelo, e seguiu pessoalmente os mensageiros, para renovar seu convite ao vivo. Infelizmente, no momento em que ele estava prestes a se juntar à rainha, o governador de Inverness, que era totalmente dedicado a ele, se recusou a permitir que Mary entrasse no castelo, que era da realeza. É verdade que Murray, convencido de que não deveria negociar com essas rebeliões, já tinha mandado cortar sua cabeça por alta traição.
Esse novo ato de firmeza mostrou a Huntly que a jovem rainha não estava disposta a permitir que os lordes escoceses retomassem o poder quase soberano removido por seu pai. De modo que, apesar da recepção extremamente gentil que ela lhe concedeu, quando ele soube no acampamento que o filho, tendo escapado da prisão, acabara de se nomear chefe de seus vassalos, ele temia que acreditassem que ele fazia parte dessa insurreição e partiu na mesma noite para assumir o comando de suas tropas, determinado, já que Mary só tinha consigo sete a oito mil homens, para se arriscar em uma batalha, divulgando, no entanto, como Buccleuch fez em sua tentativa de arrebatar James V das mãos dos Douglases, que não era na rainha que ele estava mirando, mas somente no regente, que a mantinha sob sua tutela e pervertia suas boas intenções.
Murray, que sabia que muitas vezes a paz de um reinado depende da firmeza que se exibe no seu início, convocou imediatamente todos os barões do norte cujas propriedades faziam fronteira com a dele para marchar contra Huntly. Todos obedeceram, pois a casa de Gordon já era tão poderosa que eles temiam que se tornasse ainda mais. No entanto, ficou claro que, se havia ódio pelo sujeito, não havia grande afeição pela rainha, e que a maioria vinha sem intenções fixas e com a ideia de ser levada pelas circunstâncias.
Os dois exércitos se encontraram perto de Aberdeen. Murray logo posicionou as tropas que trouxera de Edimburgo, e das quais tinha certeza, no topo de um terreno elevado, e formou fileiras na encosta da colina com todos os seus aliados do norte. Huntly avançou resolutamente sobre eles e atacou seus vizinhos, os Highlanders, que após uma curta resistência se retiraram desorganizados. Seus homens imediatamente dispensaram as lanças e, sacando as espadas e gritando “Gordon, Gordon!”, perseguiram os fugitivos e acreditavam que já tinham vencido a batalha, quando subitamente encontraram o corpo principal do exército de Murray, que permanecia imóvel como uma muralha de ferro e que, com suas longas lanças, tinha a vantagem sobre os adversários, que estavam armados apenas com suas espadas claymore. Foi a vez dos Gordon recuarem, vendo os clãs do norte se reunindo e retornando à luta, cada soldado com um raminho de urze no chapéu para que seus companheiros o reconhecessem. Esse movimento inesperado decidiu a batalha: os Highlanders correram ladeira abaixo como uma torrente, arrastando com eles todos que tentaram se opor à sua passagem. Murray, vendo que havia chegado o momento de transformar a frustração em derrota, atacou com toda a sua cavalaria. Huntly, que era muito robusto e estava armado até os dentes, caiu e foi esmagado sob os pés dos cavalos; John Gordon, detido em sua fuga, foi executado em Aberdeen três dias depois; por fim, seu irmão, jovem demais para sofrer o mesmo destino naquele momento, foi trancado em uma masmorra e executado posteriormente, no dia em que completou dezesseis anos.
Mary estava presente na batalha, e a calma e a coragem que demonstrou causaram uma impressão vigorosa em seus defensores selvagens, que ao longo da estrada a ouviram dizer que gostaria de ser homem, de passar os dias cavalgando, as noites sob uma tenda, de usar uma cota de malha, um capacete, um escudo e uma espada larga ao seu lado.
Mary entrou em Edimburgo em meio ao entusiasmo geral, pois essa expedição contra o Conde de Huntly, que era católico, fora muito popular entre os habitantes, que não tinham uma ideia muito clara dos verdadeiros motivos que a levaram a executá-la. Eles eram da fé reformada, o conde era papista, e havia um inimigo a menos: isso era tudo que eles pensavam. Agora, portanto, os escoceses, em meio a suas aclamações, por meios verbais ou por exigências escritas, expressaram o desejo de que sua rainha, que não tinha problemas com Francis II, se casasse novamente. Mary concordou e, cedendo aos conselhos prudentes das pessoas a seu respeito, decidiu consultar Elizabeth, de quem era herdeira, em seu título de neta de Henry VII, no caso de a Rainha da Inglaterra morrer sem um descendente. Infelizmente, ela nem sempre agira com a mesma cautela, pois, com a morte de Mary Tudor, conhecida como Bloody Mary, ela reivindicou o trono de Henry VIII e, contando com a ilegitimidade do nascimento de Elizabeth, assumiu com o delfim a soberania sobre a Escócia, a Inglaterra e a Irlanda e cunhou moedas com esse novo título e gravou placas com essa nova situação heráldica.
Elizabeth era nove anos mais velha que Mary, ou seja, naquele momento ainda não tinha completado trinta anos, portanto, não era apenas sua rival como rainha, mas também como mulher. No que diz respeito à educação, ela poderia sustentar a comparação com vantagem, pois, se tinha menos charme mental, tinha mais solidez de julgamento: era versada em política, filosofia, história, retórica, poesia e música. Além do inglês, sua língua materna, falava e escrevia com perfeição grego, latim, francês, italiano e espanhol. Mas, embora Elizabeth superasse Mary nesse ponto, Mary era mais bonita e, acima de tudo, mais atraente do que sua rival. Elizabeth tinha, é verdade, uma aparência majestosa e agradável, olhos rápidos e brilhantes, uma pele branca deslumbrante, mas tinha cabelos ruivos, pés grandes e uma mão poderosa, enquanto Mary, pelo contrário, com seus lindos cabelos louros acinzentados, sua nobre testa larga, sobrancelhas que só podiam ser culpadas por serem arqueadas com tanta precisão e que pareciam desenhadas com lápis, os olhos refletindo continuamente o feitiço do fogo, um nariz de perfeito delineado grego, uma boca tão vermelha e graciosa que parecia que, assim como uma flor se abre apenas para deixar escapar seu perfume, ela não poderia se abrir senão para dar passagem a palavras gentis, com um pescoço branco e gracioso como o de um cisne, mãos de alabastro, com forma de deusa e pé de criança. Mary era uma harmonia na qual o entusiasta mais ardente pela forma esculpida não encontraria nada para reprovar.
Este realmente foi o grande e verdadeiro crime de Mary: uma única imperfeição no rosto ou no corpo, e ela não teria morrido no cadafalso. Além disso, para Elizabeth, que nunca a tinha visto e, consequentemente, só podia julgar pelos boatos, essa beleza era uma grande causa de inquietação e inveja que ela nem conseguia disfarçar e que se mostrava incessantemente em perguntas e impaciência. Certo dia, quando conversava com James Melville sobre a missão dele em sua corte, a oferta de Mary de ser guiada por Elizabeth na escolha de um marido – que a princípio a Rainha da Inglaterra parecia desejar que fosse o Conde de Leicester –, ela conduziu o embaixador escocês a um gabinete, onde lhe mostrou diversos retratos com rótulos escritos na sua própria caligrafia: o primeiro era do Conde de Leicester. Como esse nobre era exatamente o pretendente escolhido por Elizabeth, Melville pediu à rainha que lhe desse o retrato para mostrar à sua senhora, mas Elizabeth recusou, dizendo que era o único que tinha. Melville respondeu, sorrindo, que estando de posse do original, ela poderia muito bem se separar da cópia, mas Elizabeth não permitiu de jeito nenhum. Essa pequena discussão terminou, ela mostrou a ele o retrato de Mary Stuart, beijando-o com muita ternura, expressando a Melville um grande desejo de ver sua senhora.
— Isso é muito fácil, milady — respondeu ele. — Fique no seu quarto, sob o pretexto de estar indisposta, e viaje incógnita até a Escócia, assim como o Rei James V partiu para a França quando quis ver Madeleine de Valois, com quem se casou posteriormente.
— Ai de mim! — respondeu Elizabeth. — Eu gostaria de fazer isso, mas não é tão fácil quanto você pensa. No entanto, diga à sua rainha que eu a amo com ternura e que desejo que possamos viver mais em amizade do que fizemos até agora. — Depois, passando para um assunto que parecia querer abordar havia muito tempo: — Melville — continuou —, diga-me francamente: minha irmã é tão bonita quanto dizem?
— Ela tem essa reputação — respondeu Melville —, mas não posso dar a Vossa Majestade nenhuma ideia da beleza dela sem ter um ponto de comparação.
— Vou lhe dar um — disse a rainha. — Ela é mais bonita do que eu?
— Milady — respondeu Melville —, a senhora é a mulher mais bonita da Inglaterra, e Mary Stuart é a mulher mais bonita da Escócia.
— Então, qual das duas é mais alta? — perguntou Elizabeth, que não ficou inteiramente satisfeita com aquela resposta, por mais inteligente que fosse.
— Minha senhora, milady — respondeu Melville —, sou obrigado a confessar.
— Então ela é alta demais — disse Elizabeth bruscamente —, pois eu sou alta o suficiente. E quais são suas diversões preferidas? — continuou.
— Milady — respondeu Melville —, caçar, cavalgar, tocar alaúde e cravo.
— Ela é habilidosa neste último? — indagou Elizabeth.
— Ah, sim, milady — respondeu Melville —, habilidosa o suficiente para uma rainha.
Ali a conversa parou; mas, como Elizabeth era uma excelente musicista, ordenou que Lorde Hunsdon levasse Melville até ela no momento em que estava tocando cravo, para que ele pudesse ouvi-la sem que ela parecesse tocar para ele. De fato, no mesmo dia, Hunsdon, de acordo com as instruções dela, levou o embaixador a uma galeria separada dos aposentos da rainha apenas por uma tapeçaria, de modo que, depois de seu guia levantá-la, Melville pôde ouvir Elizabeth, que não se virou até terminar a peça, que, no entanto, estava tocando com muita habilidade. Quando viu Melville, ela fingiu se irritar e até queria bater nele, mas sua raiva se acalmou pouco a pouco com os elogios do embaixador e cessou completamente quando ele admitiu que Mary Stuart não era igual a ela. Mas isso não foi tudo: orgulhosa de seu triunfo, Elizabeth também desejou que Melville a visse dançar. Consequentemente, ela cancelou seus despachos por dois dias para que ele pudesse estar presente em um baile que ela estava organizando. Esses despachos, como dissemos, continham o desejo de que Mary Stuart se casasse com Leicester, mas essa proposta não podia ser levada a sério. Leicester, cujo valor pessoal era, acima de tudo, bem medíocre, tinha um berço muito inferior para aspirar à mão da filha de tantos reis. Assim, Mary respondeu que essa aliança não lhe convinha. Enquanto isso, aconteceu algo estranho e trágico.
]]>Em seus casacos rubicundos de couro que chegavam aos joelhos, os homens de Erl apareceram diante de seu soberano, o homem majestoso de cabelos brancos em seu comprido salão vermelho. Ele se apoiou em sua cadeira esculpida e ouviu o porta-voz.
E assim o porta-voz disse:
— Durante setecentos anos, os chefes da sua raça nos governaram bem; e seus feitos são lembrados pelos menestréis modestos que ainda vivem de suas pequenas canções tilintantes. Mas as gerações passam, e não há nada de novo.
— O que vocês fariam? — indagou o soberano.
— Seríamos governados por um soberano mágico — responderam eles.
— Que assim seja — disse o soberano. — Faz quinhentos anos que meu povo fala disso no parlamento, e sempre deve ser como o parlamento diz. Vocês se pronunciaram. Que assim seja.
E ele ergueu a mão e abençoou a todos, e eles saíram.
Voltaram para as artes arcaicas: calçar os cascos dos cavalos com ferro, trabalhar o couro, cuidar das flores, administrar as necessidades árduas da Terra; eles seguiam os modos antigos e procuravam uma coisa nova. Mas o velho soberano enviou uma mensagem para seu primogênito, pedindo que fosse até ele.
E em pouco tempo o jovem estava diante do pai, naquela mesma cadeira esculpida da qual não tinha se levantado, onde a luz, entardecendo pelas janelas altas, mostrava os olhos envelhecidos contemplando o futuro além do tempo daquele velho soberano. E sentado ali ele deu a seguinte ordem ao filho:
— Vá — disse ele —, antes que meus dias acabem, portanto vá depressa, e siga daqui em direção ao leste e passe pelos campos que conhecemos, até ver as terras que pertencem claramente às fadas; atravesse a fronteira, que é feita de crepúsculo, e vá àquele palácio que só pode ser mencionado em canções.
— É longe daqui — disse o jovem Alveric.
— Sim — respondeu ele —, é longe.
— E mais longe ainda — disse o jovem — para voltar. Pois as distâncias naqueles campos não são como aqui.
— Mesmo assim — disse o pai.
— O que quer que eu faça — disse o filho — quando chegar a esse palácio?
E o pai respondeu:
— Que você se case com a filha do Rei de Elfland.
O jovem pensou na beleza dela e na coroa de gelo, e na doçura que as runas fabulosas diziam que lhe pertencia. Canções sobre ela eram entoadas nas colinas selvagens onde cresciam minúsculos morangos, ao fim da tarde e no despontar das estrelas, e, se alguém procurasse o cantor, não encontraria ninguém ali. Em algumas ocasiões, apenas o nome dela era entoado suave e repetidamente. Seu nome era Lirazel.
Era uma princesa de linhagem mágica. Os deuses tinham enviado suas sombras para seu batizado, e as fadas também teriam comparecido, mas ficaram com medo de ver em seus campos orvalhados as esguias sombras animadas dos deuses, por isso ficaram escondidas em touceiras de anêmonas em um tom rosa-claro e assim abençoaram Lirazel.
— Meu povo exige um soberano mágico para governá-los. Fizeram uma escolha tola — disse o velho soberano —, e só os Sombrios que não mostram seu rosto sabem o que isso vai provocar, mas nós, que não vemos, seguimos o costume antigo e fazemos o que nosso povo diz no parlamento. Talvez algum espírito de sabedoria que eles não conhecem possa salvá-los mesmo assim. Vá, então, com seu rosto voltado para aquela luz que pulsa da terra das fadas e que ilumina de um jeito fraco o entardecer entre o pôr do sol e as primeiras estrelas, e ela deve guiá-lo até você chegar à fronteira além dos campos que conhecemos.
Ele soltou uma correia e um cinturão de couro e ofereceu sua enorme espada para o filho, dizendo:
— Isto, que conduziu nossa família por todas as eras até este dia, certamente o protegerá ao longo da jornada, mesmo que você esteja muito além dos campos que conhecemos.
E o jovem a pegou, mesmo sabendo que nenhuma espada poderia beneficiá-lo.
Perto do Castelo de Erl morava uma bruxa solitária, nas terras altas perto dos trovões, que sobejavam nas colinas durante o verão. Lá ela morava sozinha em uma cabana estreita de palha e perambulava pelos campos altos sozinha para recolher os raios. Desses raios, que não tinham sido forjados na terra, eram feitas, com runas adequadas, armas para combater perigos sobrenaturais.
E sozinha essa bruxa perambulava em certas marés da primavera, assumindo a forma de uma jovem em sua beleza, cantando por entre as flores altas nos jardins de Erl. Ela saía na hora em que mariposas esfingídeas começavam a voar de campânula em campânula. E entre os poucos que a tinham visto estava esse filho do Soberano de Erl. E, embora fosse uma calamidade amá-la, embora isso arrebatasse os pensamentos dos homens para longe de tudo que era real, a beleza da forma que não era dela o atraíra para encará-la com olhos jovens e até mesmo profundos – se ela agia por orgulho ou por piedade, quem poderia saber, sendo mortal? –, ela poupou aquele que suas artes poderiam muito bem ter destruído e, transformando-se instantaneamente naquele jardim ali, mostrou a ele a forma legítima de uma bruxa letal. E mesmo assim os olhos dele não a abandonaram de imediato e, nos momentos em que esse olhar se demorou sobre aquela forma enrugada que assombrava as malvas, ele obteve a gratidão dela, que não poderia ser comprada nem conquistada por nenhum amuleto conhecido pelos cristãos. E ela o chamara, e ele a seguira e soubera, por ela, em sua colina assombrada pelo trovão, que, no dia da necessidade, uma espada poderia ser feita de metais não nascidos na Terra, com runas ao longo da lâmina que certamente afastariam qualquer golpe de espada terrena, e apenas três runas principais poderiam frustrar as armas de Elfland.
Enquanto pegava a espada do pai, o jovem pensou na bruxa.
Mal tinha escurecido no vale quando deixou o Castelo de Erl e subiu a colina da bruxa tão rápido que uma luz fraca ainda perdurava nas partes altas da mata quando ele se aproximou da cabana. Encontrou aquela que procurava queimando ossos em uma fogueira a céu aberto. Ele disse a ela que o dia da necessidade havia chegado. E ela o fez colher raios no jardim, na terra macia sob os repolhos.
E ali, com olhos que viam cada minuto mais escuro e dedos que se acostumavam com as superfícies curiosas dos raios, ele encontrou dezessete antes que a escuridão o cobrisse; e os empilhou em um lenço de seda e os levou para a bruxa.
Na grama ao lado dela, ele pousou esses desconhecidos da Terra. De espaços maravilhosos eles vinham para o jardim mágico dela, atirados pelo trovão sobre caminhos em que não podemos pisar; e, apesar de eles mesmos não conterem magia, eram bem adaptados para carregar a magia que as runas lhes proporcionariam. Ela deixou de lado o osso da coxa de um materialista e se voltou para os viajantes tempestuosos. Ela os arrumou em uma fileira única ao lado da fogueira. E sobre eles colocou a lenha em chamas e as brasas, espicaçando-as com o cetro de ébano que é o cajado das bruxas, até ter coberto profundamente os dezessete primos da Terra que nos visitaram vindos de seu lar etéreo. Ela se afastou da fogueira e estendeu as mãos e, de repente, a explodiu com uma runa apavorante. As chamas se ergueram, assombradas. E o que era apenas uma fogueira solitária na noite, sem nenhum mistério além do que pertence a todas essas fogueiras, refulgiu em algo que os viajantes temiam.
Enquanto as chamas verdes, atormentadas pelas runas, se erguiam, e o calor do fogo ficava mais intenso, ela deu mais passos para trás e simplesmente enunciou as runas um pouco mais alto quanto mais se afastava da fogueira. Ela pediu que Alveric empilhasse lenhas escuras de carvalho que jaziam amontoadas na mata; e, de imediato, quando ele as soltou, o calor as lambeu; e a bruxa continuou enunciando suas runas cada vez mais alto, e as chamas dançavam selvagens e verdes; e sob as brasas os dezessete, cujos caminhos tinham cruzado a Terra quando vagavam livremente, conheceram um calor tão grandioso quanto o que tinham conhecido, mesmo naquela viagem desesperada que os levara até ali. E, quando Alveric não podia mais se aproximar do fogo e a bruxa estava a alguns metros de distância gritando suas runas, as chamas mágicas consumiram as cinzas, e aquela potência que refulgia na colina cessou de repente, deixando apenas um círculo que brilhava de modo sombrio no chão, como a poça maligna que reluz onde houve uma explosão de termite. E, deitada no halo, ainda totalmente líquida, estava a espada.
A bruxa se aproximou e aparou as bordas com uma espada que tirou da própria coxa. Em seguida ela se sentou ao lado dela no solo e cantou para a espada enquanto ela esfriava. Diferente das runas que enfureceram as chamas era a canção que ela entoava para a espada: ela, cujas maldições fizeram o fogo explodir até consumir toras de carvalho, agora entoava uma melodia que era como um vento no verão soprando de jardins de florestas selvagens que nenhum homem cultivou, descendo por vales antes adorados por crianças, agora perdidos para elas exceto em sonhos, uma canção de lembranças que espreitam e se escondem nas fronteiras do esquecimento, agora brotando de belos anos de vislumbre de um momento dourado, agora fugindo rapidamente da memória de novo para voltar às sombras do esquecimento e deixando na mente aqueles traços mínimos de minúsculos pés reluzentes que, quando são obscuramente percebidos por nós, são chamados de remorso. Ela cantava sobre antigas tardes de verão na época das campânulas: cantava naquela charneca alta e sombria uma música que parecia tão cheia de manhãs e tardes preservadas com todos os seus orvalhos pela sua arte mágica em dias que já teriam se perdido, que Alveric se perguntou com cada asinha errante que o fogo dela tinha atraído do crepúsculo se esse era o espírito de alguma época perdida para os homens, invocado pela força de sua canção de tempos mais belos. E, enquanto isso, o metal sobrenatural endurecia. O líquido branco enrijeceu e ficou vermelho. O brilho do vermelho esmoreceu. E, conforme esfriava, também se estreitou: pequenas partículas se uniram, pequenas fendas se fecharam: e, enquanto elas se fechavam, se apossavam do ar ao redor e, com o ar, capturaram a runa da bruxa e a prenderam para sempre. E assim ela se transformou em uma espada mágica. E praticamente toda a magia das florestas inglesas, desde o florescer das anêmonas até a queda das folhas, estava na espada. E praticamente toda a magia das terras baixas ao sul, por onde perambulam apenas ovelhas e pastores silenciosos, a espada detinha. E havia nela o aroma de tomilho e o aspecto dos lilases, e o coro de pássaros que cantam antes do amanhecer em abril, e o profundo esplendor dos rododendros e a flexibilidade e a jovialidade dos riachos, e quilômetros e quilômetros de flores de maio. E, quando a espada ficou preta, estava totalmente encantada de magia.
Ninguém pode lhe dizer tudo que há para ser dito sobre essa espada; pois aqueles que conhecem os caminhos do Espaço no qual seus metais costumavam flutuar, até a Terra capturá-los um por um enquanto navegavam em sua órbita, têm pouco tempo para desperdiçar em coisas como a magia, e assim não podem lhe dizer como a espada foi feita, e aqueles que sabem onde se encontram a poesia e a necessidade que os homens têm de canções ou conhecem todos os cinquenta ramos da magia têm pouco tempo para desperdiçar em coisas como ciência e, portanto, não podem lhe dizer de onde vieram os ingredientes. Basta saber que ela já esteve além da nossa Terra e aqui entre as nossas pedras mundanas; que já foi apenas como essas pedras, e agora tem em si algo parecido com o que a música suave tem; quem puder que as defina.
E agora a bruxa pegou a lâmina preta pelo punho, que era grosso e arredondado em um dos lados, pois ela havia feito um pequeno sulco no solo sob o punho com esse propósito, e começou a afiar os dois lados da espada esfregando-os com uma pedra esverdeada curiosa, ainda entoando sobre ela uma canção misteriosa.
Alveric a observava em silêncio, pensando, sem contar o tempo; podem ter sido instantes, pode ter sido enquanto as estrelas viajaram grandes distâncias em seu curso. De repente, ela terminou. Levantou-se com a espada apoiada nas duas mãos. Estendeu-a para Alveric de um jeito seco; ele a pegou, ela desviou o olhar; e havia uma expressão nos olhos dela como se quisesse manter a espada ou manter Alveric. Ele se virou para agradecer, mas ela havia sumido.
Ele bateu à porta da casa sombria; chamou “Bruxa, Bruxa” pela extensão da mata solitária, até as crianças de fazendas distantes ouvirem e ficarem apavoradas. Então, voltou para casa, e foi o melhor para ele.
No aposento comprido com poucos móveis, alto na torre, no qual Alveric dormia, um raio direto do sol nascente entrou. Ele acordou e se lembrou imediatamente da espada mágica, e isso deixou seu despertar mais feliz. É natural se sentir alegre ao pensar em um presente recente, mas também havia uma alegria na espada em si, que talvez se comunicasse com os pensamentos de Alveric com mais facilidade por terem acabado de sair do mundo dos sonhos, que era preeminentemente o reino da própria espada; mas, de qualquer modo, todos aqueles que se aproximaram de uma espada mágica sempre sentiram essa alegria de maneira clara e inequívoca enquanto ela ainda era nova.
Ele não tinha despedidas para fazer, mas achou melhor obedecer imediatamente à ordem do pai do que ficar para explicar por que estava levando em sua aventura uma espada que achava melhor do que a que seu pai adorava. Por isso, nem ficou para comer, mas colocou comida em uma sacola e pendurou em uma alça uma garrafa de bom couro novo, sem esperar para enchê-la, pois sabia que encontraria riachos; e, carregando a espada do pai do jeito que as espadas são carregadas normalmente, pendurou a outra nas costas com o punho bruto amarrado perto do ombro e saiu a passos largos do Castelo e do Vale de Erl. Dinheiro ele levou pouco, meio punhado de cobre apenas, para usar nos campos que conhecemos, já que não sabia que moeda ou meio de troca era usado no outro lado da fronteira do crepúsculo.
Bem, o Vale de Erl fica muito perto da fronteira além da qual não há nada dos campos que conhecemos. Ele subiu a colina e andou a passos largos pelos campos e passou pelos bosques de avelãs; e o céu azul brilhava alegremente sobre ele conforme seguia pelos campos, e o azul também era vibrante a seus pés quando ele chegou à floresta, pois era época das campânulas. Comeu, encheu a garrafa de água e viajou o dia todo em direção ao leste, e ao entardecer as montanhas das fadas surgiram no seu campo de visão, da cor de pálidas miosótis.
Quando o sol se pôs atrás de Alveric, ele olhou para as montanhas azul-claras para ver com qual cor seus picos surpreenderiam o fim da tarde; mas elas nunca exibiam nem um tom do sol poente, cujo esplendor dourava todos os campos que conhecemos, nunca uma dobra desbotava em seus precipícios, nunca uma sombra se aprofundava, e Alveric descobriu que nada do que acontece aqui repercute nas terras encantadas.
Ele desviou os olhos dessa beleza pálida e serena e os voltou para os campos que conhecemos. E ali, com suas cumeeiras se erguendo para a luz do sol sobre sebes profundas embelezadas pela primavera, ele viu cabanas de homens terrenos. Passou por elas enquanto a beleza do fim da tarde aumentava, com as canções dos pássaros e os aromas escapando das flores e odores que se aprofundavam cada vez mais, e o entardecer se enfeitava para receber a Estrela Vespertina. Mas, antes que essa estrela aparecesse, o jovem aventureiro encontrou a cabana que procurava; pois, tremulando sobre a porta, ele viu a placa da enorme pele marrom com letras raras em dourado que proclamavam que o habitante ali embaixo era um correeiro.
Um velho apareceu na porta quando Alveric bateu, pequeno e encurvado com a idade, e se inclinou ainda mais quando Alveric declarou seu nome. O jovem pediu uma bainha para sua espada, mas não disse que espada era. E ambos entraram na cabana, onde a velha esposa estava, ao lado da grande lareira, e o casal fez as honras a Alveric. O velho então se sentou perto da mesa sólida, cuja superfície brilhava de tão lisa nos pontos onde não estava esburacada por pequenas ferramentas que perfuraram os cortes de couro ao longo de toda a vida daquele homem e na época de seus ancestrais. E ali ele pousou a espada sobre os joelhos e se admirou com a brutalidade do punho e do guarda-mão, pois eram feitos de metal rudimentar não trabalhado, e com a enorme largura da espada; em seguida, estreitou os olhos e começou a pensar no seu negócio. E em pouco tempo pensou no que deveria ser feito; e sua esposa lhe trouxe uma bela pele; e ele marcou nela dois cortes da largura da espada e um pouco mais largos que ela.
E qualquer pergunta que ele fazia sobre aquela espada brilhante e larga Alveric conseguia desviar, pois não queria causar perplexidade em sua mente contando tudo que ela era. Ele causou perplexidade suficiente no velho casal um pouco depois, quando pediu para se hospedar ali naquela noite. E isso permitiram-lhe com todos os pedidos de desculpas, como se eles é que tivessem pedido um favor, e lhe deram uma excelente ceia servida do seu caldeirão, no qual fervilhava tudo que o velho tinha caçado; mas nada que Alveric pudesse dizer os impediu de lhe dar a própria cama e preparar uma pilha de peles para eles passarem a noite ao lado da lareira.
E, depois da ceia, o velho cortou os dois pedaços largos de couro com uma ponta no fim de cada um e começou a costurá-los juntos nos dois lados. Alveric começou a lhe perguntar sobre o caminho, e o velho correeiro falou do norte e do sul e do oeste e até do noroeste, mas sobre o leste e o sudeste não disse uma palavra. Ele morava bem perto da fronteira dos campos que conhecemos, mas, sobre qualquer indício de alguma coisa além deles, nem ele nem a esposa falaram nada. No local por onde a jornada de Alveric continuava no dia seguinte, eles pareciam pensar que o mundo acabava.
E, ponderando depois na cama que eles lhe deram sobre tudo que o velho dissera, Alveric às vezes se admirava com sua ignorância, mas às vezes se perguntava se podia ser por habilidade que os dois tivessem evitado durante todo o entardecer qualquer palavra sobre alguma coisa que existisse a leste ou sudeste de seu lar. Ele ficou pensando se, na juventude, o velho poderia ter ido até lá, mas não conseguiu nem pensar no que ele teria encontrado se tivesse ido. Então Alveric adormeceu, e os sonhos lhe deram indícios e palpites sobre as peregrinações do velho na Terra das Fadas, mas não deram guias melhores do que ele já tinha, que eram os picos azul-claros das Montanhas Élficas.
O velho o acordou depois que ele dormiu por muito tempo. Quando chegou à sala, um fogo radiante estava queimando, o café da manhã estava preparado para ele e a bainha estava pronta, cabendo com exatidão na espada. Os velhos esperavam em silêncio por ele e receberam o pagamento pela bainha, mas não aceitaram nada pela hospitalidade. Em silêncio eles o observaram partir e o seguiram sem palavras até a porta, e lá fora ainda o observavam, na clara esperança de que ele seguisse para o norte ou o oeste; mas, quando virou e seguiu a passos largos em direção às Montanhas Élficas, eles não o observaram mais, pois seus rostos nunca se viravam naquela direção. E, apesar de não o observarem mais, ele acenou um adeus; pois tinha um sentimento pelas cabanas e pelos campos desse povo simples, apesar de eles não sentirem isso pelas terras encantadas. Ele caminhou na manhã cintilante por cenários familiares desde a infância; viu as orquídeas rubicundas florescendo cedo, lembrando às campânulas que elas tinham acabado de passar do seu vigor; as jovens folhinhas do carvalho ainda estavam amarelo-amarronzadas; as novas folhas de faia reluziam como latão, onde o cuco cantava mais cedo; e uma bétula parecia uma criatura dos bosques selvagens que se enrolara em gaze verde; em arbustos formosos havia brotos de flores de maio. Alveric se despediu várias vezes de todas essas coisas: o cuco continuou cantando, e não era para ele. E então, quando ele atravessou uma sebe e chegou a um campo sem cuidados, ali adiante, bem perto estava, como seu pai lhe dissera, a fronteira do crepúsculo. Ela se estendia na sua frente, azul e densa como água; e as coisas que se viam através dela pareciam disformes e brilhantes. Ele olhou para trás, para os campos que conhecemos; o cuco continuava cantando sem preocupação; um pequeno pássaro cantava sobre seus assuntos particulares; e, como nada parecia responder nem dar importância à sua despedida, Alveric seguiu a passos largos cheio de coragem em direção àquelas imensas parcelas de crepúsculo.
Um homem em um campo não muito distante estava chamando os cavalos, havia pessoas conversando em um caminho nos arredores enquanto Alveric adentrava o baluarte do crepúsculo; imediatamente esses sons ficaram fracos, zumbindo tênues, como se estivessem muito distantes: em poucos passos ele atravessou, e nem um murmúrio veio dos campos que conhecemos. Os campos de onde ele viera terminaram subitamente; não havia resquício de suas sebes verdejantes; ele olhou para trás e a fronteira parecia estar abaixando, enevoada e esfumaçada; olhou ao redor e não viu nada conhecido; no lugar da beleza de maio estavam as maravilhas e os esplendores de Elfland.
As montanhas azul-claras se assomavam imponentes em sua glória, reluzindo e ondulando em uma luz dourada que parecia emanar de maneira ritmada dos picos e inundava todas aquelas encostas com brisas de ouro. E, abaixo delas, ainda distantes, ele viu se erguerem para o ar, totalmente prateados, os pináculos do palácio que só pode ser mencionado em canções. Ele estava em uma planície na qual as flores eram raras e a forma das árvores era monstruosa. Partiu imediatamente em direção aos pináculos prateados.
Para aqueles que sabiamente mantiveram suas ilusões dentro dos limites dos campos que conhecemos, é difícil eu falar da terra à qual Alveric tinha chegado, de modo que em suas mentes eles consigam ver a planície com árvores espalhadas e bem distantes da floresta sombria da qual o palácio de Elfland erguia aqueles pináculos reluzentes, e sobre eles e além deles aquela cadeia de montanhas cujos cumes não recebiam nenhuma cor das luzes que vemos. E é exatamente por esse motivo que nossas ilusões viajam para longe e, se meu leitor, por falha minha, não conseguir visualizar os picos de Elfland, minha ilusão deveria ter ficado nos campos que conhecemos. Saiba, então, que em Elfland as cores são mais intensas que nos nossos campos, e o próprio ar de lá brilha com uma luminescência tão profunda que todas as coisas vistas ali têm algo da aparência das nossas árvores e flores em junho refletidas na água. E as cores de Elfland, que me desesperei para explicar, ainda podem ser definidas, pois temos indícios delas aqui; o azul intenso da noite no verão assim que o ocaso se foi, o azul-claro de Vênus inundando o entardecer de luz, as profundezas dos lagos no crepúsculo; tudo isso são indícios dessas cores. E, embora nossos girassóis se virem cuidadosamente para o sol, algum antepassado dos rododendros deve ter se virado um pouco na direção de Elfland, de modo que um pouco dessa glória persiste neles até hoje. E, acima de tudo, nossos pintores tiveram muitos vislumbres daquele reino, de modo que às vezes em quadros vemos uma magia maravilhosa demais para os nossos campos; é uma memória deles que se infiltrou de algum vislumbre antigo das montanhas azul-claras enquanto eles se sentavam diante de cavaletes pintando os campos que conhecemos.
E assim Alveric caminhou a passos largos pelo ar luminoso daquela terra cujos vislumbres vagamente lembrados são inspirações aqui. E de repente se sentiu menos solitário. Pois há uma barreira nos campos que conhecemos, delimitando bruscamente os homens e todas as outras formas de vida, de modo que, se passarmos um dia distante da nossa espécie, nos sentimos solitários; mas, ao atravessar a fronteira do crepúsculo, Alveric percebeu que essa barreira tinha desaparecido. Corvos andando pela charneca olhavam de um jeito estranho para ele, todos os tipos de pequenas criaturas espiavam curiosas para ver quem tinha chegado de um canto de onde tão poucos vinham; para ver quem saiu em uma jornada da qual tão poucos retornavam; pois o Rei de Elfland guardava bem sua filha, como Alveric sabia, embora não soubesse como. Havia um brilho alegre de interesse em todos aqueles pequenos olhos, e uma expressão que poderia significar advertência.
Talvez houvesse menos mistério aqui do que no nosso lado da fronteira do crepúsculo; pois nada espreitava nem parecia espreitar por trás dos grandes troncos de carvalho, como, em certas luzes e estações, as coisas espreitavam nos campos que conhecemos; nenhuma estranheza se escondia na margem distante das montanhas; o que poderia espreitar estava claramente ali para ser visto, qualquer estranheza que pudesse existir estava bem à vista do viajante, o que pudesse assombrar as florestas profundas vivia ali no dia claro.
E o encantamento era tão forte e profundo sobre toda aquela terra que não apenas os animais e os homens adivinhavam bem as intenções uns dos outros, mas parecia haver até mesmo um entendimento que se estendia dos homens até as árvores e das árvores até os homens. Pinheiros solitários pelos quais Alveric às vezes passava na charneca, com os troncos sempre incandescendo de luz rubicunda que absorveram por magia de um antigo pôr do sol, pareciam assomar sobre ele como alguém de mãos na cintura se inclinando de leve para encará-lo. Era quase como se elas não tivessem sido sempre árvores, antes de o encantamento tê-las alcançado ali; parecia que iam lhe dizer alguma coisa.
Mas Alveric não deu nenhuma atenção aos alertas dos animais e das árvores e seguiu a passos largos em direção à floresta encantada.
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Pela floresta tomada pela neve vieram Opechanchanough e seus bravos, caminhando tão silenciosamente quanto os flocos de neve caíam ao redor deles. De suas escápulas desciam chumaços de cabelos escalpelados que seus silenciosos donos Monachans não ignoravam.
Mas Opechanchanough, a caminho de Werowocomoco para contar ao Chefe Powhatan a respeito da vitória conquistada sobre seus inimigos, não tinha certeza de que havia matado todo o grupo que ele e seus braços Pamunkey tinham atacado. A neve inesperada, caindo no fim do inverno, tinha sido soprada pelo vento para dentro de seus olhos, então não sabiam ao certo se alguns Monachans tinham conseguido escapar da vingança. E tão próximos das tendas da tribo de seu irmão, como estavam, o inimigo poderia ter armado uma emboscada. Por isso era importante que eles permanecessem em guarda, olhando atrás de cada árvore para ver se havia pessoas agachadas e mantendo os ouvidos bem aguçados de modo que nem um esquilo pudesse quebrar uma noz sem que eles soubessem onde o animalzinho estava.
Opechanchanough liderava a fila comprida que abria caminho em meio ao espaço amplo entre os enormes carvalhos, ainda cor-de-bronze com as folhas do ano passado. Ele manteve a cabeça erguida e para si repetia a letra da música de triunfo que pretendia cantar ao Chefe Powhatan, quando o líder dos Powhatans fosse chamado. E então, de repente, à frente de seu rosto, passou uma flecha.
Com um grito do líder, a fileira comprida se jogou para a direita, e cinquenta flechas vieram voando do norte – a direção de onde poderiam esperar o perigo. Mas o silêncio se manteve; não ouviram gritos de um inimigo escondido, nenhum sinal de outras criaturas humanas.
Opechanchanough perguntou a seus guerreiros de onde a flecha tinha vindo e, enquanto conversavam, outra flecha vinda da direita passou à frente de seu rosto.
— Um arqueiro ruim – resmungou ele —, que não consegue me acertar com duas tentativas. – Em seguida, apontando para um enorme carvalho que se bifurcava da metade para cima, ordenou:
— Peguem o inimigo!
Dois guerreiros correram em direção à árvore, para a qual todos olhavam fixamente agora. Era difícil distinguir algo em meio à neve que caía e à massa de flocos que havia se ajuntado na forquilha. Tudo estava branco ali, mas havia algo branco que se movimentou, e os dois bravos, ao alcançarem o tronco da árvore, gritaram animados e desdenhosos.
A figura de branco se movia depressa. Balançou-se em um galho e agarrou-se a outro mais alto, e parecia determinada a fugir de seus perseguidores até chegar ao topo da árvore. Mas os guerreiros não perderam tempo e subiram atrás dela. Saltavam como panteras. Agarraram-se ao galho e o balançaram com força para a frente e para trás, fazendo os pés da criatura escorregarem e ela acabar caindo em seus braços estendidos.
Não esperaram nem sequer para ver do que se tratava o monte de pelos brancos. Os guerreiros, cercados pelos companheiros curiosos, levaram a criatura a Opechanchanough e a colocaram no chão diante dele, que se ajoelhou e ergueu o capuz de pele de coelho que escondia-lhe o rosto. E então gritou, assustado e irado:
— Pocahontas! O que pretende pregando essa peça?
E o monte de pelos brancos, levantando-se, riu e riu até o guerreiro mais velho e sério não conseguir conter um sorriso. Mas Opechanchanough não sorriu – estava bravo demais. Sua dignidade estava ferida por ter sido alvo da piada de uma criança. Ele chacoalhou a sobrinha, dizendo:
— Perguntei o que pretende com isso. O que pretende?
Pocahontas parou de rir e respondeu:
— Queria ver com meus próprios olhos o tamanho da coragem que vocês têm, tio, e ver se são bons guerreiros quando um inimigo ataca. Não sou uma arqueira tão ruim. Só não atiraria em você, por isso mirei além de onde estavam. Mas foi divertido ficar sentada na árvore observando vocês pararem tão de repente.
Sua explicação fez com que a maior parte do grupo caísse na risada.
— Na verdade, o nome dela é bem adequado – eles disseram. — “Pocahontas” quer dizer “criança levada”.
— Tenho outro nome – disse ela ao guerreiro velho mais próximo dela. — Sabe qual é? Matoaka, pequena pena de neve. Sempre que as luas de popanow nos trazem neve, ela me chama para brincar. “Vamos, Pena de Neve”, diz a neve, “venha correr comigo e me jogar para cima”.
O tio já tinha recuperado a calma e estava prestes a começar a seguir em frente de novo. Virando-se para os dois que tinham capturado Pocahontas, ele disse:
— Já que pegamos uma prisioneira, vamos levá-la ao Chefe Powhatan para que ele a julgue. Se tivéssemos atirado de volta em direção à árvore, ela poderia ter morrido. Não deixem que ela escape.
E então, ele seguiu em frente em meio à floresta, sem dar mais atenção à Pocahontas.
Os jovens bravos olharam com timidez um para o outro e para sua cativa, não muito satisfeitos com a tarefa. Uma ordem de Opechanchanough não podia ser desobedecida, mas não era fácil segurar uma jovem moça contra sua vontade, e não poderiam usar – ou tentar usar – de força contra uma filha do poderoso cacique.
Ao notar a hesitação deles, Pocahontas começou a correr para a esquerda, e eles foram atrás dela. Conseguiram alcançá-la antes que ela percorresse a distância de três flechadas, e a levaram, com delicadeza, de volta para à fila. Ela caminhou tranquilamente ao lado deles como se não notasse suas presenças, até eles se distraírem, acreditando que ela havia se conformado com a situação, para então fugir pela direita – e de novo foi capturada e levada de volta. Ela sabia que eles não ousariam prendê-la, e tirou vantagem disso para envolvê-los em uma dança, primeiro correndo para um lado e depois para o outro. Atrás deles, os companheiros gritavam e riam sempre que a moça fugia.
A ordem normal do grupo não estava mais sendo preservada enquanto avançavam. Eles tinham passado do ponto onde não havia mais nenhuma possibilidade ou perigo de ataque hostil. Werowocomoco estava agora a uma curta distância; a fumaça vinda da tribo já podia ser vista nos campos que cercavam a tribo de Powhatan. Os guerreiros mais velhos andavam em grupos, falando sobre seus feitos naquele dia e elogiando os feitos de vários dos bravos jovens que tinham lutado pela primeira vez. Pocahontas e seus captores agora seguiam bem mais atrás.
Apesar de satisfeita com os resultados de sua empreitada e diversão, Pocahontas não queria ser levada para dentro da casa como uma cativa, ainda que fosse meio de brincadeira. Seu pai talvez não achasse tão engraçado e, além disso, ela não gostava de ser contrariada. Estava tão pensativa que se esqueceu de continuar a brincadeira e continuou caminhando, acompanhando as passadas mais compridas dos guerreiros, apressando os passos de vez em quando. Os rapazes, pensando muito na primeira campanha, levavam sempre a mão às mechas escalpeladas com carinho, e prestavam pouca atenção a ela.
Ela parou como se fosse ajeitar o mocassim, e então, como eles seguiram andando um pouco até pararem para esperá-la, ela se mandou como um raio e escorregou para dentro de um buraco antes que eles reagissem e fossem atrás dela.
Já estava quase escuro e seus pelos brancos não podiam ser distinguidos da neve. Antes que eles descessem pela mesma abertura, Pocahontas, que conhecia cada centímetro do chão que era menos familiar aos homens da tribo de seu tio, já tinha voltado para a floresta cercada pelos campos nos quais seus perseguidores agora corriam, e pôde se perder na escuridão.
Opechanchanough não soube dessa fuga. Ele pretendia explicar a seu irmão que uma criança poderia fazer travessuras se não fosse mantida em casa realizando tarefas domésticas em sua oca. E não importava se Pocahontas era ou não a filha preferida de Powhatan, pois deveria esperar do lado de fora da cabana do pai até que ele relatasse o ocorrido e falasse sobre os feitos gloriosos realizados por seus Pamunkeys.
Agora, eles tinham chegado a Werowocomoco, e o barulho dos gritos e dos tambores de guerra fez com que os moradores saíssem de suas tendas. Como os Pamunkeys eram uma tribo aliada, a causa deles contra um inimigo comum era a mesma, mas a alegria da vitória contra os Monachans era menor do que teria sido se os vencedores fossem Powhatans. No entanto, Opechanchanough e seus guerreiros não podiam reclamar da recepção oferecida, e os homens da frente partiram para avisar Powhatan da chegada deles enquanto todos os moradores da tribo se reuniam ao redor deles – os homens questionando e os meninos tocando as mechas, comentando quantas eles teriam na escápula quando crescessem.
O grande cacique não estava em sua cabana, mas em uma na qual ele apenas dormia e comia quando estava em Werowocomoco. Opechanchanough parou na entrada da tenda e ordenou:
— Quando eu chamar, tragam Pocahontas, e veremos o que o Chefe Powhatan pensa de uma menina mimada que atira flechas em guerreiros.
A tenda estava quase escura quando ele entrou. Diante do fogo no centro, ele conseguiu ver seu irmão Powhatan sentado, ladeado por cada uma das esposas. Então, reconheceu os traços de seu sobrinho Nautauquas e a irmã mais nova de Pocahontas, Cleopatra. Era evidente que eles tinham acabado de jantar, e os cães atrás deles roíam os ossos de peru que lhes tinham sido jogados. Aos pés do Chefe Powhatan, havia uma criança agachada com roupa escura, o rosto à sombra.
Powhatan cumprimentou seu irmão com seriedade e fez sinal para que ele se sentasse. A tenda logo ficou cheia com guerreiros próximos uns dos outros, e perto da entrada se aglomeraram todos os que puderam, e estes repetiram aos homens e às mulheres índias do lado de fora as palavras que eram ditas lá dentro.
Orgulhosamente, Opechanchanough começou a contar que tinha seguido os Monachans a um monte acima do rio, e que ele e seu grupo de guerra os tinham atacado, fazendo-os rolar ladeira abaixo, matando e escalpelando, chegando a nadar na água gelada para pegar aqueles que tentavam fugir. E o Chefe Powhatan assentia aprovando, murmurando de vez em quando uma palavra elogiosa. Quando Opechanchanough terminou seu relato, o xamã – ou curandeiro – se levantou e entoou uma canção de louvor aos bravos Pamunkeys, irmãos dos Powhatans.
Depois, um a um, os guerreiros de Opechanchanough contaram sobre suas explorações pessoais.
— Eu – disse um —, eu, o Lobo da Floresta, devorei meu inimigo. Muitos sóis devem se pôr vermelhos entre as árvores da floresta, mas nenhum tão vermelho quanto o sangue que jorrou quando minha faca afiada escalpelou o inimigo.
E conforme cada um contava seus feitos, as palavras eram recebidas com salvas de palmas e gritos de incentivo.
Powhatan deu ordens para abrir a tenda de visitas e preparar um banquete para os visitantes. Então, Opechanchanough se levantou de novo para falar. Quando terminou outra canção de triunfo, virou-se para Powhatan e perguntou:
— Irmão, há quanto tempo seus guerreiros estão dentro das tendas, deixando às jovens índias a tarefa de sentinelas que não conseguem distinguir amigos de inimigos?
Powhatan olhou para o homem, assustado.
— O que quer dizer com palavras tão estranhas? – perguntou o cacique.
— Enquanto voltávamos pela floresta – explicou Opechanchanough —, antes de chegarmos ao fim dos campos, quando ainda acreditávamos que uma parte dos Monachans podia estar armando uma emboscada para nós ali, uma flecha, vinda do oeste, passou diante de meu rosto. Em seguida, veio uma segunda flecha, dos galhos de um carvalho. Pegamos quem estava atirando com o arco, e o senhor consegue imaginar quem encontramos? Uma menina índia!
— Uma menina índia! – repetiu o Chefe Powhatan, surpreso. — Era de nossa tribo?
— Sim, irmão. Eu estou com ela aqui fora, para que você possa pronunciar seu julgamento sobre alguém que colocou em risco, com o que fez, a vida de seu irmão, esquecendo-se que não é um garoto. Tragam a prisioneira – disse ele, dando ordem.
Mas ninguém apareceu. Os jovens bravos que tinham a tarefa de conter Pocahontas se mantiveram atrás da multidão, espertos que eram.
Então, a pequena figura aos pés de Powhatan se levantou e ficou de pé com a luz do fogo iluminando seu rosto e os cabelos pretos, e perguntou com a voz delicada:
— O senhor me chamou, meu tio?
— Pocahontas! – exclamou Opechanchanough. — Como pôde chegar aqui antes de nós, e com essa roupa preta?
— Pocahontas consegue correr melhor ainda do que consegue atirar, tio, e trocar de roupa é algo que demora poucos instantes.
— Por que fez o que fez, Matoaka? – perguntou o Chefe Powhatan, usando o apelido especial dela, que significava Pequena Pena de Neve. Ele falava com a voz baixa, mas tão séria que Cleopatra estremeceu e ficou feliz por não ser a culpada.
— Foi só uma brincadeira, meu pai – respondeu Pocahontas. — Eu não queria ferir ninguém. – Ela abaixou a cabeça e esperou até poder falar de novo.
— Não aceito brincadeiras desse tipo em minha terra – disse ele, irado. — Lembre-se disso.
Com um gesto da mão e uma ordem sussurrada, ele mandou os guerreiros Pamunkey para a tenda de visitas. Opechanchanough, ainda com raiva da situação ridícula à qual uma criança o havia submetido, permaneceu para perguntar:
— Não vai puni-la?
— Claro que vou – respondeu Powhatan. — Quero que vocês todos fiquem na tenda de visitas, e logo estarei lá. Vá, Nautauquas, e leve meu cachimbo para lá.
Naquele momento, eles estavam sozinhos na tenda: o grande cacique de mais de trinta tribos e sua filha, que ainda mantinha a cabeça baixa. Chefe Powhatan olhou para ela com curiosidade. Ela esperou até que ele falasse, mas como ele ficou quieto, ela se virou e olhou diretamente em seu rosto, perguntando:
— Pai, o senhor sabe como é difícil ser garota? Nautauquas, meu irmão, corre depressa, mas eu corro mais rápido do que ele. Consigo atirar tão reto quanto ele, ainda que não tão longe. Consigo ficar sem comer e sem beber tanto tempo quanto ele. Consigo dançar sem me cansar, sendo que ele fica ofegante. Mas ainda assim, Nautauquas será um grande guerreiro e eu – ouço me lembrarem de que sou uma garota. Não é difícil, meu pai? Por que, então, me deu braços e pernas fortes, além de um espírito que não se aquieta? Não me culpe, meu pai, porque preciso rir, correr e brincar.
Enquanto ela falava, caiu de joelhos e abraçou os pés dele; e quando parou de falar, sorriu destemida, olhando no rosto do pai.
Chefe Powhatan tentou não se emocionar com o pedido da menina. Mas ele era um cacique que sempre repreendia quem fazia coisas erradas e dava desculpas para tais erros, e julgava as pessoas de modo justo, ainda que, às vezes, duro. Ele gostava tanto daquela filha quanto o calor do verão gostava da correnteza. Se, às vezes, a água espirrasse alto demais, como poderia se enfurecer?
E Pocahontas, ao ver que a raiva dele já tinha passado, ficou de pé e apoiou a cabeça em seu braço. Ninguém precisava dizer a ela que o poderoso Powhatan não amava esposa, nem nenhum filho tanto quanto a amava. Em seguida, ele acariciou seus cabelos e rosto macios, e ela soube que tinha sido perdoada.
— Seu tio está muito bravo – disse ele.
— O senhor tinha que ter visto a cara dele, pai, quando a flecha passou – disse ela, rindo ao se lembrar.
— Prometi punir você.
— Sim, o senhor vai me punir. – Mas ela não disse aquilo com medo.
— Escute bem o que direi – disse ele, fingindo seriedade. — Você deve bordar para mim, com suas próprias mãos e não com agulhas de índia, um manto de pele de guaxinim com penas e conchinhas bonitas.
Pocahontas riu.
— Isso não é punição. É estranho, mas quando faço coisas de que não gosto para as pessoas que amo, sinto prazer em fazê-las. Farei para o senhor um manto como o senhor nunca viu. Ah! Vai ser lindo. Farei novos desenhos como nenhuma outra índia sonhou em fazer. Mas o senhor nunca ficará bravo comigo, não é? – ela suplicou. — E se, em algum momento, eu fizer algo que desagrade ao senhor… Se puder vestir o manto que eu farei, permita que ele seja um símbolo entre nós, e que quando eu tocá-lo, o senhor me perdoe e me conceda o que peço.
Powhatan prometeu e sorriu para ela antes de partir em direção à tenda de visitas.
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Os habitantes das povoações ou aldeias dormem cedo, por isso, na Passagem das Pedras, a pouco mais das dez horas da noite, só se via brilhar uma luz cuja claridade saía da janela do oitão da casa do fim da rua. Tudo mais era treva e silêncio sob a imensidade do céu estrelado.
Do peitoril da mesma janela, debruçava-se um moço, chegado há pouco da cidade, a conversar com um rapazinho, que estava assentado à borda da calçada, e dizia-lhe:
— O sono se esqueceu de ti, Valentim.
— Sr. doutor não me conhece — respondeu o menino com vivacidade —, estou acostumado a tudo! Tenho viajado com meu pai por todo este mundão de meu Deus! Muitas vezes caminhamos com a lua até a meia-noite ou uma hora da madrugada.
— Tu que tens viajado muito — disse o moço gracejando —, diz-me o que é aquilo ali, na linha do horizonte, para o lado do nascente?
— Ali, Sr. Edmundo? — apontou Valentim. — É a serra das Antas.
— É fértil aquela serra? — tornou ele.
— Assim, assim — volveu o campônio —, fazem roçados nas quebradas e plantam alguma cana, mas coisa pouca.
— Aqui, deste outro lado, vejo outra serra muito alta — disse o Dr. Edmundo.
— Qual? Aquele serrote? Parece alto porque está mais perto — volveu o menino —, aquela é a Serra do Areré; mas é encantada, ninguém vai lá.
— Ninguém! Por quê? — disse Edmundo, com espanto.
— Porque, se for, não voltará mais; dizem que tem uma gruta onde mora uma moça encantada numa cobra, que à noite sai pelos arredores a fazer distúrbios.
— E acreditas nessas bruxarias, Valentim?
— Ora, se acredito; minha avó também não acreditava, assim como o senhor, mas agora está certa e mais que certa da verdade. Uma noite destas, viu, ela mesma, descer da serra e passar cantando pela estrada uma moça bonita, vestida de branco. E o senhor quer saber? Ia seguida pelo diabo, um moleque preto de olhos de fogo, com uma cauda comprida que arrastava no chão!
— Isto é sério, Valentim?
— Ora, se é! Ela trazia também um cachorro preto que dava ondas à claridade da lua! Minha avó quase morre de medo; chamou meu pai, e ele também viu. Conta a quem quiser ouvir; e todos sabem que meu pai não é homem de mentiras.
— Te fazia mais inteligente, Valentim! Não vês que isto é uma história de bruxa sem fundamento, inventada pela superstição do povo?
— Quem contou ao senhor doutor que é história de bruxa?! — disse o menino com exaltação. — Acredito, porque eu mesmo já vi. Em uma tarde dessas, ia eu com minha irmã Ritinha pastorear umas cabras, lá para as faldas do Areré... Não se ria, senhor doutor, olhe que eu vi, não estou mentindo... ela estava em pé sobre o monte, tinha um livro aberto na mão, mas não lia, olhava para o céu como aquela Nossa Senhora da Penha, que está pintada num quadro da igreja do Nosso Senhor do Bonfim.
— Quem estava de pé no monte? — perguntou Edmundo, rindo.
— A moça encantada — respondeu Valentim.
O Dr. Edmundo ficou pensativo. Muitas vezes tinha zombado da credulidade do povo, e não podia tomar a sério aquelas histórias incoerentes; mas procurava o fio da realidade perdido naquele labirinto de ideias extravagantes e fantásticas.
Averiguar o fato seria uma distração para a monotonia de seus dias, para o aborrecimento de sua vida cansada das brilhantes misérias das grandes cidades; por isso fingiu acreditar nas ingênuas palavras do camponês e disse-lhe:
— Pois bem, Valentim, se ficar aqui mais alguns dias irei contigo à gruta para ver a moça encantada. Se for bonita, caso-me com ela.
— Não graceje, senhor doutor... Ela tem pacto com Satanás! Dizem que, onde aparece, é desgraça certa. Chamam-na “A Funesta”. Deus me livre de encontrá-la. Boa noite, já é tarde, e a vovó zanga-se quando me demoro. Sai sempre de madrugada? A que horas quer os cavalos?
— Às quatro, não falte.
— Não, senhor — disse Valentim, e desapareceu correndo pela encosta.
O Jaguaribe corria em frente da janela, onde o Dr. Edmundo ficou ainda a cismar; mas sua vista errante parou sobre a lua erguendo-se no firmamento azul, como uma hóstia de ouro.
A solidão era completa, o silêncio era profundo!
Nem o vento movia os ramos das árvores. Elas se levantavam do meio da sombra projetada pela copa, como espectros cismadores.
De repente, soou ao longe uma voz doce e triste entoando uma canção francesa, e era tão saudosa, tão cheia de melancolia que as próprias pedras da margem pareciam comover-se, escutando:
Te souvient tu Marie
De notre enfance au champs
Notre jouet a la prairie,
J’avais alors quinze ans.
A voz era de mulher e vinha se aproximando. Já se distinguia o som de uma harpa com que ela se acompanhava.
Deslizando mansamente pelo rio, vinha de longe um pequeno bote; era dele que partia o som melancólico da harpa e as estrofes saudosas da canção, que prosseguia assim:
Te souvient tu même
De nos transports brülants,
Quand je te dis: t’aime...
J’avais alors quinze ans.
Le bruit de cette fête
Retour dans mon coeur
Le temps que je regrets
C’est le temps de bonheur.
Au présent je soupire...
Mes yeux sont baissés,
Ils ont craint de me dire
Mes beaux jours sont passés.
Ma bouche em vain répète
De regrets superflus!
Les temps que je regret
C’est le temps que n’est plus.
Quando a pequena embarcação passou por defronte da janela, Edmundo pôde contemplar à vontade a formosa bateleira. Ela vestia branco, tinha os cabelos soltos e a cabeça cingida por uma grinalda de rosas.
De pé no meio do bote, encostava a harpa ao peito e tocava com maestria divina! O luar dava-lhe em cheio nas faces esmaecidas pelo sereno da madrugada, e os olhos extremamente belos estavam amortecidos por uma expressão magoada de tristeza indefinível. Algumas gotas de pranto umedeciam-lhe as pálpebras e tremulavam ainda nas negras pestanas.
Vinha, ali também assentado no banco da proa, sustentando o remo e movendo-o com perícia, uma figura negra e peluda, feia de meter medo.
E, para mais confirmar a sua parecença com o rei das trevas, o tal moleque tinha uma cauda que, achando pouca acomodação no banco, se tinha estendido pela borda do bote, e parecia brincar na superfície das águas.
De espaço em espaço, a enorme cabeça de um cão cor de azeviche aparecia e tornava a ocultar-se aos pés da cantora.
O bote passou defronte da janela; a voz foi se perdendo ao longo do rio, até sumir-se.
O silêncio restabeleceu-se.
O Dr. Edmundo era que não saía do pasmo em que o tinha deixado aquela estranha aparição! Julgava-se alucinado! Duvidava do testemunho de seus próprios olhos, e para certificar-se de que não sonhava, beliscou com força as mãos e sentiu-se acordado.
Fechou a janela e foi deitar-se; mas não podia dormir; a sedutora imagem o perseguia com aferro.
O Dr. Edmundo havia viajado muito, estivera em Paris, onde gastou quase uma fortuna; mas nunca fora tão singularmente impressionado.
Quem seria aquela mulher?, pensava ele. Donde vinha? Para onde ia? Seria o anjo da saudade, perdido nas solidões da noite? As melancólicas notas daquele canto traduziriam o poema de um amor infinito sepultado nas cinzas do coração?
Por que capricho aquela criatura formosa, romântica e ideal misturava o belo com o horrível? Por que se acompanhava com figuras tão irrisórias? Mistério!
Ele concordou logo que Valentim tinha um pouco de razão, pois estava fora de dúvida que, por aquelas paragens, existia a verdadeira causa que dava origem à crença do povo; mas em que sítio morava essa rica senhora, que se comprazia em mistificar os simples habitantes daquela povoação com seus caprichos romanescos?
O Dr. Edmundo voltava-se no leito, frenético de impaciência, porque não podia achar uma explicação razoável para o que acabava de ver. Querendo imaginar que a moça fosse uma harpista e cantora de esquina que por ali aparecesse, rejeitou a ideia, porque lhe pareceu inadmissível que uma dessas infelizes pudesse se trajar com tanto luxo; pois tinha visto bem, ao clarão da lua, brilhar no dedo da mão que ela passava nas cordas da harpa um lindo anel de brilhantes.
Fugindo com a ideia para o campo das recordações, o moço pensou em Veneza, nas gôndolas, nas serenatas ao luar. Depois figurou-se na Alemanha, viu seus castelos feudais: uns pendurados às verdes encostas das margens do Reno, outros no gosto da arquitetura normando-gótica, que floresceu no século XII, e levando às nuvens suas torres orgulhosas. Passavam-lhe na vista as belas muralhas, as pontes levadiças, os fossos, as ameias, os mirantes, as arcadas, os jardins cercados de rochas e as fontes murmurantes! Ainda lhe apareceu à mente o rosto formoso de uma fada, e lhe embalaram os ouvidos as notas saudosas do canto melancólico com que dizem que ela seduz os viajantes nas margens daquele rio. Assim, adormeceu enlevado.
Já os galos amiudavam o canto, e as nuvens do alvorecer do dia se espalhavam no céu, deixando ver uma tênue claridade.
O Dr. Edmundo, adormecido há pouco tempo, sonhava ainda com a cantora do bote, a náiade do Jaguaribe, quando duas fortes pancadas na porta do quarto o fizeram despertar, sobressaltado:
— Quem bate? O que quer? — perguntou enfadado.
— O dia já vem rompendo, senhor doutor — disse o criado. — Valentim já está aí com os cavalos.
— Vai-te daí! Deixa-me dormir, não me aborreças!
— Acorde, senhor doutor, são horas.
— Horas de quê, marmanjo?
— De partirmos, senhor.
— Para onde?
— Valha-me Deus — dizia o pachorrento criado, continuando a bater devagarinho. — Já é muito tarde; o Valentim não quer mais esperar.
— Diz-lhe que vá embora.
Adriano, assim se chamava o criado, estranhou a contraordem, mas obedeceu, e esperou que o amo se levantasse das oito para as nove horas do dia. Enquanto passava o tempo, foi Adriano sentar-se ao batente do portão e observar os costumes matinais daquela aldeia.
Alguns camponeses passavam de enxada ao ombro seguindo para seus rústicos trabalhos. Uma mulher vinha entrando na povoação trazendo à cabeça uma grande cuia de beijus de goma, alvos como jasmins; um pescador vinha mais atrás trazendo a tiracolo um uru de peixes, outros os levavam em cambadas presas a um pau que traziam ao ombro, e assim os ofereciam pelas portas.
Valentim, apesar da hora adiantada do dia, esperava ainda à porta, tendo um cavalo selado preso à mão pelas cambas do freio, e outros pelos cabrestos.
Edmundo, tendo-se levantado, chegou à janela para lançar uma vista aos lugares da visão da noite, e vendo ainda o paciente rapaz a esperar pela última decisão, disse-lhe:
— Leva, Valentim, diz a teu pai que trate da minha cavalgadura. Não pretendo sair já, quando decidir-me, te avisarei.
O menino afastou-se com os três cavalos, e Edmundo foi entender-se com o criado:
— É preciso, Adriano, procurar-me uma cozinheira e arranjar-me alguns móveis mais indispensáveis.
Adriano saiu em busca do necessário, pasmo de admiração daquela resolução repentina do amo.
O doutor Edmundo teria vinte e quatro a vinte e cinco anos. Seu pai fora um rico negociante da Fortaleza; foi nessa bela cidade do Norte que ele passou os seus primeiros anos, onde fez os preparatórios e donde mandaram-no para a Academia de Direito do Recife. Ali fez ele sempre um dos mais brilhantes papéis, apesar de não ser gênio nem um talento de primeira plana. Mas, bem-apessoado e único herdeiro de uma boa fortuna, era o eldorado das moças, e até dos próprios pais.
Não havia baile, jantar, batizado ou casamento para o qual não tivesse um convite formal, além de receber muitos recadinhos particulares e íntimos.
Nessas ocasiões, apresentava-se sempre com um figurino da última moda. Além disso, tocava flauta, cantava árias e duetos, recitava ao piano versos próprios ou dos poetas de maior nomeada; contava anedotas, dançava admiravelmente e ninguém o vencia no galanteio!
Em matéria de amor, não admitia a verdade, zombava de meia dúzia de corações, verdadeiros tesouros de sentimento, onde tinha feito despertar o mais sincero e puro afeto, e depois ia escrever folhetins nos rodapés dos jornais dos estudantes, contra a inconstância e leviandade das mulheres, rindo-se ao mesmo tempo com os amigos de ter feito no mesmo jornal, com diversos pseudônimos, quatro ou cinco sonetos: a Marília, Laura, Beatriz, Leonor e Julieta.
Mas isso não privava que o acadêmico gozasse da maior consideração dos pais e da simpatia das filhas... Era tão afável... tão elegante e delicado... Quem poderia deixar de estimá-lo?
Depois, não eram aquelas as qualidades mais próprias para atrair na sociedade?
O nosso herói, aos vinte e dois anos, defendeu tese e recebeu a carta de doutor, formado em Direito pela Academia do Recife.
Por esse tempo, perdeu o pai. Já não tinha mãe, portanto recolheu a herança que lhe competia e foi viajar.
Dois anos depois, voltou ao Rio de Janeiro quase pobre. Vinha do estrangeiro farto de divertimentos cortesãos, sentindo fastio e aborrecimento das grandes cidades, então lembrou-se de ir visitar uma fazenda que possuía nos sertões do Ceará, para os campos do Jaguaribe: eis aí por que o encontramos pernoitando na povoação da Passagem das Pedras, onde ficou fascinado pela voz da fada encantada da gruta do Areré.
Pelas dez horas do dia, entrou Adriano satisfeito. Tinha arranjado tudo, inclusive a cozinheira, uma mulata de quarenta e tantos anos, asseada, bisbilhoteira e alegre.
Entrou desembaraçada e começou brigando a arrumar a cozinha e a especular ao criado pela vida do Dr. Edmundo.
Adriano respondia-lhe com chascos e burlas que a Úrsula, assim se chamava ela, tolerou a princípio; mas foram tais as gaiatices que ela perdeu a paciência e, deixando os bifes que estava temperando, empertigou-se toda e, pondo as mãos nas ilhargas, disse:
— Eu te arrenego, pé de pato; pensas, endemoninhado, que todos aqui são matutos? Eu também já andei lá pelas outras terras, já cozinhei para muitos senhores e senhoras de bem!
Adriano respondia-lhe com outras graças e piruetas.
— Vai-te para lá, maroto! — dizia a tia Úrsula meio séria, afinal, não teve outro remédio senão rir-se; pois ninguém podia zangar-se com aquele tipo de criado raro.
Ele também, como o amo, tinha seus predicados muito apreciáveis para os de sua laia. Além disso, era fiel, habilidoso, com jeito para tudo, gaiato, e um pouco entremetido dentro dos limites do respeito, falta esta que Edmundo tolerava em atenção às suas outras qualidades necessárias. Eram quase da mesma idade, o servia desde a infância, viajou com ele, portanto o estimava quanto era possível estimar um servo de muitos anos.
Com poucas horas de convivência com o criado do doutor, a gorducha cozinheira reconheceu que o seu gênio folgazão lhe quadrava perfeitamente, e virando-se às boas, com ares de santa, que não critica de nada, enquanto preparava o almoço, contava-lhe a vida da maior parte dos habitantes do lugar, acabando por dizer:
— Ainda agora há pouco, a Carlotinha me perguntou se o senhor doutor é casado ou solteiro, e eu disse: sei lá...
— É casado, sim — afirmou Adriano.
— Deixa-te de prosa, que eu já sei que não é...
— E por que não disse à moça o que sabia?
— Porque ela é um anjo, e não quero que vá se engraçar dos enfunados da cidade para depois ficar chorando de saudade enquanto eles se põem ao largo.
— Quem é esta Carlotinha, tia Úrsula? — perguntou Adriano.
— Caluda — disse a tia Úrsula, pondo o indicador sobre os lábios para fazer silêncio. — É a filha de D. Raquel, a professora aqui da casa vizinha, já hoje a vi à janela duas vezes.
— Ah! Já sei, é uma moça loura, bonita... — disse Adriano.
— Sim, senhor! Bonita e boa! A primeira cá da terra. O pai é arranjado, tem uma boa fazenda na mata, e depois a mãe também tem seu ordenado e traz a menina que é um gosto vê-la. Quando aparece uma moda, é a primeira a botá-la. E, aqui para nós, é a mais jeitosa; as outras são umas empanturradas, que lhes não acho sal.
E a cozinheira fazia trejeitos, arremedando as moças do lugar.
Adriano aplaudia a comédia e instigava a tia Úrsula a continuar nela; mas, de repente, perguntou:
— Mas que diabo é esta Funesta, de quem ouço falar por toda parte? Ainda pela manhã, quando fui às compras na taverna do Vital, ouvi dizer que é uma moça encantada que vive na gruta do Areré. Isso é verdade?
— Ai! quem dera que fosse mentira!... — disse a tia Úrsula comicamente triste. — Ainda esta noite pela madrugada andou ela por cá a fazer diabruras! Onde aparece deixa o sinal. Olhe, para o amanhecer de hoje, furtaram os porcos do Zé Pereira! Num samba que houve ali pra baixo, o pau roncou! E quem ficou com as cacetadas foi o pobre do Chico Timbaúba.
O Adriano deu uma gargalhada:
— Forte admiração, tia Úrsula; em toda a parte não se furta, não se briga? Ora, essa!
— Já vem o desavergonhado com as estúrdias dele — disse a cozinheira desconfiada. — Bem sei que em toda a parte se furta e se briga; mas isso aqui nunca se dava. Depois que a tal de Funesta começou a sair da gruta e a passear de noite pelo povoado... olha lá furto! Olha barulho! — disse ela, ainda arregalando os olhos e movendo a cabeça em sinal afirmativo.
— Olé! Que povo tolo! — exclamou Adriano.
— Tolos são vocês lá da cidade, que são uns incréus!
O Dr. Edmundo, que andava passeando da sala até a varanda, ouviu a conversa da cozinheira com Adriano, e durante o resto do dia não pensou em outra coisa senão na aparição da noite. O seu maior desejo era visitar a gruta.
Era a hora da tristeza, aquela em que o sol, depois de ter brilhado no firmamento azul, mergulha nas róseas nuvens do ocaso, parecendo dizer um eterno e saudoso adeus ao dia que vai desaparecer para sempre no manto escuro do passado.
Saltando, cabeceando sobre as rochas, vinha um bando de cabras acompanhadas por uma rapariguinha de pouco mais de treze anos. Ela trajava vestido de chita roxa com ramagens encarnadas, trazia um fichu a tiracolo e calçava tamancos de marroquim verde.
A cabreira era morena e quase feia, mas sua fisionomia franca e alegre inspirava confiança e simpatia; acompanhando em zigue-zague o giro de suas cabras, ela trepava de rocha em rocha com a mesma alegria e com a mesma agilidade de seu rebanho!
Quedou-se de repente e seguiu pausadamente olhando a furto um elegante cavaleiro que vinha se aproximando. Este parou e disse, familiarmente:
— Por que andas ainda aqui a esta hora, Ritinha? Já não tens medo da Funesta?
— Cada vez tenho mais, senhor Edmundo — respondeu ela —, vou por aqui às carreiras; mas o que fazer? Não pude voltar mais cedo... as malditas das cabras só me faltaram por doida; trepa aqui, trepa ali, era um nunca acabar.
— E onde estava o Valentim que não veio ajudar-te? — disse Edmundo.
— Ele foi com meu pai cortar um pouco de rama e ainda não voltou — respondeu Ritinha, com desembaraço. — Mas o Dr. Edmundo também aqui a esta hora... não tem medo da Funesta?
— Tenho, menina, mas ando doido por encontrá-la.
— Deus o defenda, senhor doutor... Ela seria capaz de o fazer cair do cavalo e quebrar o pescoço!
— É tão má assim? — perguntou ele com um risinho de dúvida.
— Ora, se é — disse a menina, e afastou-se correndo atrás das cabras.
— Espera, Ritinha! — gritou Edmundo. — Ensina-me primeiro o caminho da gruta.
— Vai por aí mesmo — voltou-se ela, e apontou —, chegando ao pé daquele monte, sobe-se um bocadinho...
— Obrigado, até logo.
— Deus o leve, e Deus o traga... não vá ficar também encantado!
Edmundo partiu, cravando as esporas no cavalo; o animal tropeçava nas pedras da ladeira e as folhas secas estalavam-lhe nos cascos; mas ele, de cabeça quase a tocar na terra, buscava sempre direção oposta da que lhe dava o cavaleiro.
É que os brutos, que nós chamamos irracionais, têm mais exato conhecimento do perigo e sabem melhor livrar-se dele que o mais abalizado sábio!
Certamente um cavalo, uma cabra ou um gato sabe melhor o caminho que lhe convém à borda do precipício que o ser mais inteligente do mundo!
Bem depressa, o cavalo de nosso doutor chegou ao lugar indicado pela cabreira; mas ele foi que não deu com a gruta. Enquanto subia o monte, ia lendo em todas as pedras do caminho a palavra “Solitário”. Era bem merecido o nome, se era ele dado àquele lugar deserto e triste como a própria mágoa.
Chegado ao cimo da ladeira, Edmundo avistou uma grande pedra a poucos passos. Subia-se para ela por degraus naturais que chegavam ao assento daquele rústico trono trabalhado caprichosamente pela mão da natureza.
Edmundo estava amarrando o cavalo ao tronco de uma árvore quando viu assomar no alto da pedra a cabeça negra e felpuda do terra-nova que ele tinha visto no bote, na noite da serenata.
Subiu um montezinho de terra vermelha estrelado de malacacheta ou mica e, escondido por trás de uns arbustos, esperou.
Pouco depois, apareceu outro personagem do bote; era um enorme e feio orangotango vestido a marujo e trazendo, pendente do cinturão de couro de lustro, uma pistola.
— O orangotango é um mono sem cauda — disse Edmundo consigo. — Mas o que foi aquilo que vi rastejando à borda do bote para a água do rio? Provavelmente alguma corda atirada ao acaso; estou certo que o medo... ou a prevenção faz ver o que não existe.
Era tal o espírito de curiosidade que o dominava que nem ousava mexer-se, tinha os olhos fitos na arma de fogo que o mono afagava de vez em quando, e lhe parecia ver a cada instante brilhar um relâmpago, seu cavalo cair morto!
Mas tal não sucedeu, pois o suposto marinheiro contentou-se em dar um salto acrobático e cair escanchado na sela!
O animal, sob o peso do estranho cavaleiro, relinchou.
Imediatamente surgiu, no alto da escada de pedra, o vulto majestoso da cantora do bote, da fada do Areré.
— King! — exclamou ela com voz melodiosa e doce.
O orangotango foi sentar-se a seus pés no último degrau, obediente como um rafeiro.
Ela continuava de pé com os olhos fitos na extensão dos campos vizinhos. Era uma estátua de mármore.
Trajava veludo cor de púrpura ou flor de amaranto, e trazia ao peito, preso por uma roseta de brilhantes, um ramo de saudades.
Despregou-o e começou a desfolhar uma a uma as belas flores, fitando tristemente as petalazinhas perdidas em redemoinho pelos ares.
King tirou do bolso um cachimbo italiano e se pôs a fumar sossegadamente.
Edmundo estava suspenso; não podia formular uma só ideia sobre tão extraordinária e misteriosa criatura!
As tristes sombras da noite iam se estendendo cada vez mais. As avezinhas da serra chilreando pelos ramos se aproximavam dos ninhos, e os insetos zumbindo procuravam as cavernas; mas ela continuava a olhar os campos e o azul do céu. Tinha a vista embebida nas colunas de ouro que o sol desenhava nas nuvens, mergulhando por trás de um monte escarpado.
O nosso herói curioso, tendo necessidade de voltar antes que as trevas lhe alcançassem em caminhos que mal conhecia, resolveu sair do esconderijo e aparecer, fosse qual fosse o resultado.
A fada assustou-se, desceu precipitadamente os degraus de pedra e desapareceu no sopé do monte, seguida por King e o terra-nova.
Edmundo acompanhou-lhe os passos, e descobriu a entrada da gruta; mas tudo ali protestava contra a passagem de um ser humano!
Era impossível penetrar naquela caverna escuríssima, onde esvoaçavam em chusma repugnantes morcegos.
Ele partiu à desfilada para a povoação e chegou às sete horas da noite, cada vez mais atraído para a fada do Areré, chamada pelo povo – a Funesta.
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Ele veio ao mundo no meio da mata, em uma daquelas clareiras pequenas e escondidas da floresta que aparentemente ficam abertas por todos os lados, mas que por todos os lados estão protegidas.
Também havia pouco espaço lá, suficiente apenas para ele e sua mãe.
Ali ele se ergueu, cambaleou alarmado sobre as pernas finas, fitou abobalhado com olhos turvos que nada viam, deixou a cabeça pender, tremia muito e ainda estava completamente aturdido.
— Que belo filhote! – gritou a pega.
Ela passara voando, atraída pelo gemido arfante que as dores arrancaram da mãe. Então, a pega se sentou em um galho próximo.
— Que belo filhote! – gritou ela agora. Não recebeu resposta e se pôs a tagarelar. — Que surpreendente que já consiga ficar em pé e andar! Que interessante! Nunca vi uma coisa dessas na vida. Bem, claro, eu ainda sou jovem, saí há um ano do ninho, como a senhora talvez saiba. Mas eu acho maravilhoso. Tão criança… vem ao mundo neste segundo e já consegue ficar em pé. Acho elegante. Realmente acho tudo em vocês, corças, muito elegante. E também já consegue correr…?
— Com certeza – respondeu a mãe, baixinho. — Mas a senhora vai me desculpar, não estou em condições de conversar. Tenho tanto a fazer agora… e, além do mais, ainda estou me sentindo um pouco fraca.
— Não se deixe prender por mim – disse a pega —, também não tenho muito tempo. Mas é que não se vê algo assim todo dia. Eu lhe digo, como essas coisas são desajeitadas e difíceis para nós. Não se pode tocar nos filhotes quando saem do ovo, ficam lá no ninho, desprotegidos, e precisam de alguém que cuide deles, alguém que cuide, estou lhe dizendo, disso a senhora certamente não fazia ideia. Que trabalho dá alimentá-los, que medo dá vigiá-los. Peço que a senhora pense em como é exaustivo precisar buscar comida para os filhotes e ao mesmo tempo cuidar para que nada aconteça com eles. Não conseguem fazer nada quando não há ninguém por perto. Eu não tenho razão? E quanto tempo é preciso esperar até que possam se mexer, quanto tempo leva até que tenham penas e fiquem com uma aparência decente?
— Perdão – retrucou a mãe —, eu não estava ouvindo.
A pega saiu voando dali. Que idiota, pensou ela, elegante, mas idiota!
A mãe mal percebeu e se pôs a banhar com zelo o recém-nascido. Ela o lavava com a língua, e esse ato reunia tudo: higiene corporal, massagem quentinha e carinhos amorosos.
O pequeno cambaleava um pouco. Entre carinhos e lambidas que o tocavam com suavidade aqui e ali, ele se encolheu um pouco e ficou parado. Sua pelagem vermelha, que ainda estava um pouco desgrenhada, tinha finos salpicos brancos, e no rosto confuso de filhote ainda havia uma expressão profundamente sonolenta.
Ao redor cresciam avelaneiras, cornisos, abrunheiros e jovens sabugueiros. Altos bordos, faias e carvalhos formavam um teto verde sobre o bosque cerrado, e brotavam do solo firme e marrom-escuro samambaias, ervilhacas e sálvia. Bem embaixo aninhavam-se na terra as folhas de violeta, que já haviam florescido, e de morangos, que já haviam começado a florescer. A luz do sol matutino esgueirava-se pela folhagem densa como um fio diáfano dourado. A floresta inteira ecoava várias vozes, era cruzada por elas, bem como por uma agitação alegre. O papa-figo vibrava sem cessar, as pombas arrulhavam, as andorinhas piavam, os tentilhões batiam as asas, os abelharucos pipiavam. O que atravessava essa cantoria era o grito que os gaios soltavam, a provocação zombeteira das pegas, o rompante tom metálico do cacarejar estilhaçador dos faisões. Às vezes, o gritinho agudo de um pica-pau cruzava todos os cantos. O grasnado do falcão ressoava claro e penetrante sobre as copas das árvores, e o coro rouco dos corvos era ouvido o tempo todo.
O pequeno não entendia nenhum dos muitos cantos e gritos, nenhuma palavra daquelas conversas. Não ouvia nada delas. Também não percebia nenhum de todos os cheiros que a floresta exalava. Ouvia apenas o pequeno chiado que passava sobre seu saiote, enquanto era lavado, aquecido e beijado, e não sentia nenhum cheiro além do corpo próximo da mãe. Bem aconchegado nessa proximidade benfazeja, buscou faminto ao redor e encontrou a fonte da vida.
Enquanto bebia, a mãe continuou a acarinhar o pequeno.
— Bambi – sussurrou ela.
Naquele momento, ela ergueu a cabeça, deixando as orelhas agirem, e respirou fundo.
Então, beijou novamente seu filhote, calma e feliz.
— Bambi – repetiu ela —, meu pequeno Bambi.
No começo do verão, as árvores estavam paradas sob o céu azul, mantinham os braços estendidos e recebiam a força que emanava do Sol. Nas sebes e arbustos do bosque, as flores se abriam, estrelas brancas, vermelhas ou amarelas. Em muitas, os botões dos frutos já se faziam visíveis, inúmeros, pendiam das finas pontas dos galhos, macios, firmes e decididos, e pareciam pequenos punhos cerrados. Do chão vinham as estrelas coloridas de muitas e variegadas flores, e a terra brotava no fundo penumbroso da floresta em um colorido silencioso e fervilhante. Tudo tinha cheiro de folha fresca, de flores, de leiva úmida e madeira verde. Quando a manhã irrompia e quando o sol se punha, a floresta inteira ressoava com milhares de vozes, e de manhã à noite zumbiam abelhas, zuniam as vespas, a zoada retumbava pelo silêncio perfumado.
Assim foram os dias em que Bambi passou sua primeira infância.
Ele caminhava atrás de sua mãe em uma faixa estreita que corria no meio dos arbustos.
Como era agradável passear por ali. A folhagem densa acarinhava seu flanco com suavidade, curvando-se levemente para o lado. O caminho parecia bloqueado e obstruído dez vezes por todos os lados, ainda assim se avançava com a maior tranquilidade. Em todo canto havia essas vias, elas cortavam e cruzavam a floresta toda. A mãe conhecia todas elas, e quando Bambi às vezes era impedido por um arbusto como se fosse um muro verde intransponível, a mãe sempre encontrava, sem hesitar ou muito procurar, o local onde o caminho estava traçado.
Bambi perguntava. Ele amava fazer perguntas à mãe. Para ele, a coisa mais legal era perguntar e então ouvir a resposta que a mãe lhe dava. Bambi não se surpreendia por lhe ocorrerem tantas perguntas, uma atrás da outra, o tempo todo e sem descanso. Ele achava perfeitamente natural; ele se deliciava demais. Deliciava-o também esperar com curiosidade até a pergunta chegar. Se ela chegasse como queria, ele sempre ficava satisfeito com ela. Às vezes, claro, ele não a entendia, mas também era legal, porque podia sempre podia continuar perguntando, quando quisesse. Às vezes, não continuava com as perguntas, e também era legal, porque se punha a imaginar do seu jeito aquilo o que não entendia. Às vezes, ele sentia muito claramente que sua mãe não lhe oferecia uma resposta completa, não lhe dizia tudo o que sabia de propósito. E isso era muito legal. Pois assim uma curiosidade muito especial permanecia dentro dele, uma ideia que lampejava nele de forma misteriosa e estimulante, uma espera na qual ele ficava ansioso e entusiasmado, tanto que se calava.
Então, ele perguntou:
— De quem é esse caminho, mãe?
A mãe respondeu:
— Nosso.
Bambi perguntou de novo:
— Meu e seu?
— Isso!
— Nosso?
— Isso!
— Só nosso?
— Não – respondeu a mãe. — Nosso, das corças…
— O que é isso, corça? – perguntou Bambi e riu.
A mãe olhou ao redor para encontrá-lo e também riu:
— Você é uma corça, e eu sou uma corça. Somos corças. Entende?
Bambi deu um pulo alto, rindo.
— Sim, entendo. Eu sou um corço pequeno e você é uma corça grande. Não é?
A mãe meneou a cabeça para ele.
— Isso mesmo.
Bambi voltou a ficar sério:
— Existem outras corças além de mim e de você?
— Claro – disse a mãe. — Muitas.
— Onde elas ficam? – perguntou Bambi em voz alta.
— Aqui, em todo lugar.
— Mas… eu não vejo.
— Logo vai ver.
— Quando? – Bambi estacou por pura curiosidade.
— Logo. – A mãe continuou andando, tranquila.
Bambi seguiu-a. Ele se calou, pois estava ruminando o que isso poderia significar: “Logo”. Ele chegou à conclusão de que “logo” com certeza não era “já”. Mas ele não conseguia decidir em que momento esse “logo” terminava para ser “logo” e começava a virar “lento”. De repente, ele perguntou:
— Quem fez esse caminho?
— Nós – respondeu a mãe.
Bambi se surpreendeu:
— Nós? Você e eu?
A mãe disse:
— Bem, nós… as corças.
Bambi perguntou:
— Quais?
— Nós todas – disse a mãe.
Eles continuaram. Bambi estava satisfeito e teve vontade de pular fora do caminho, mas ele se manteve obediente ao lado da mãe. Diante deles, veio um farfalhar bem perto do chão. Com um movimento brusco, algo saiu de lá e se escondeu entre os galhos de samambaia e as folhas de alface-selvagem. Uma vozinha fina guinchou, lastimável, então tudo ficou em silêncio. Apenas as folhas e os talos de mato tremelicavam no lugar. Um furão havia caçado um camundongo. Nesse momento, ele passou às pressas, desviou para o lado e começou sua refeição.
— O que foi aquilo? – perguntou Bambi, agitado.
— Nada – tranquilizou a mãe.
— Mas… – tremeu Bambi —, mas… eu vi.
— Muito bem – disse a mãe —, não se assuste. O furão matou o camundongo.
Mas Bambi ficou terrivelmente assustado. Um terror grande e desconhecido envolveu seu coração. Demorou muito até que ele pudesse falar de novo. Então, ele perguntou:
— Por que ele matou o camundongo?
— Porque… – A mãe hesitou. — … vamos mais rápido – disse ela, como se lhe tivesse ocorrido alguma coisa, e ela tivesse esquecido a pergunta. Ela começou a trotar. Bambi saiu aos pulos atrás dela.
Passou-se muito tempo; eles voltaram a andar tranquilamente. Por fim, Bambi perguntou, apreensivo:
— Vamos ter que matar um camundongo?
— Não – respondeu a mãe.
— Nunca? – perguntou Bambi.
— Nunca – foi a resposta.
— Por que não? – questionou Bambi, aliviado.
— Porque nós não matamos ninguém – disse simplesmente a mãe.
Bambi voltou a ficar empolgado.
De um jovem freixo que ficava próximo ao caminho, saiu um guincho alto. A mãe continuou sua caminhada sem dar atenção. Porém, Bambi estacou, todo curioso. Dois gaios enfrentavam-se lá em cima nos galhos por um ninho que haviam saqueado.
— Trate de dar o fora, seu malandro! – gritou um deles.
— Não fique nervosinho, seu maluco – retrucou o outro —, não tenho medo de você.
O primeiro vociferou.
— Procure outro ninho, seu ladrão! Eu esmago sua cabeça. – Ele estava fora de si. — Que maldade! – ralhou ele. — Que maldade!
O outro percebeu Bambi, sacudiu alguns galhos para baixo e chiou para ele:
— O que está olhando aqui, seu pirralho! Desapareça!
Intimidado, Bambi saiu aos pulos dali, alcançou a mãe, caminhou de novo atrás dela, obediente e apavorado, e achou que ela não havia notado que o deixara para trás.
Depois de um tempo, ele perguntou:
— Mãe… o que é isso, maldade?
A mãe respondeu:
— Não sei.
Bambi refletiu. Então, voltou a falar:
— Mãe, por que aqueles dois estavam tão bravos um com o outro?
A mãe respondeu:
— Estavam brigando por comida.
Bambi voltou a perguntar:
— Nós também vamos brigar por comida um dia?
— Não – afirmou a mãe.
Bambi questionou:
— Por que não?
E a mãe lhe disse:
— Há o suficiente para nós todos.
Bambi quis saber mais uma coisa:
— Mãe…?
— O que foi?
— Nós vamos ficar bravos um com o outro?
— Não, meu filho – respondeu a mãe —, isso não existe entre a gente.
Eles continuaram. Lá adiante, ficou totalmente claro de uma vez, uma claridade radiante. O emaranhado verde de galhos e arbustos havia terminado, o caminho havia terminado. Apenas alguns passos e eles sairiam para a liberdade iluminada que se abria diante deles. Bambi quis saltar à frente, mas a mãe parou.
— O que foi? – gritou ele impaciente e já totalmente fascinado.
— A campina – disse a mãe.
— O que é isso, a campina? – quis saber Bambi.
A mãe interrompeu-o.
— Você já vai ver. – Ela ficou séria e atenta. Sem se mover, manteve a cabeça alta, espreitando, tensa, testou o vento respirando profundamente e parecia muito austera.
— Está bem – disse ela por fim —, podemos sair.
O pequeno corço deu um salto, mas ela bloqueou seu caminho.
— Espere até eu chamá-lo.
Nesse momento, Bambi estacou, obediente.
— Isso mesmo – elogiou a mãe. — Agora, preste atenção no que vou dizer.
Bambi ouviu a agitação na voz da mãe e ficou muito tenso.
— Não é tão simples caminhar pela campina – continuou a mãe —, é uma coisa difícil e perigosa. Não me pergunte por quê. Você vai aprender com o tempo. Por ora, faça exatamente o que eu disser. Está bem?
— Sim – prometeu Bambi.
— Muito bem. Eu saio primeiro, sozinha. Fique aqui e espere. E fique me olhando sempre. Não tire os olhos de mim nunca. Se você vir que estou correndo de volta para cá, dê meia-volta e corra o mais rápido que puder. Eu alcanço você. – Ela se calou, pareceu refletir, e continuou com insistência: — Corra, corra o máximo que puder. Corra, de qualquer maneira… mesmo se acontecer alguma coisa… mesmo se me vir… se me vir indo ao chão… não preste atenção em mim, entendeu?… Seja lá o que veja ou ouça… continue, sem parar e o mais rápido possível…! Você promete que fará isso?
— Prometo – disse Bambi, baixinho.
— Mas se eu chamá-lo – falou a mãe —, você poderá ir. Lá fora, na campina, vai poder brincar. É bonito lá fora e você vai gostar. Só que… você precisa me prometer… que no primeiro grito meu você ficará ao meu lado. E pronto! Você me ouviu?
— Sim – respondeu Bambi, mais baixo ainda. A mãe falava com muita seriedade.
E continuou a falar:
— Lá fora… se eu gritar… nada de olhar ao redor, nada de perguntas, só venha atrás de mim como o vento! Preste atenção. Sem pensar, sem hesitar… imediatamente, quando eu começar a correr, significa que você deve fugir logo e não ficar parado até estarmos de novo lá dentro. Não vai se esquecer disso?
— Não – afirmou Bambi, apreensivo.
— Então, agora eu vou – avisou a mãe, parecendo um pouco mais calma.
Ela saiu. Bambi, que não tirava os olhos dela, viu como ela avançava devagar com passos altos. Cheio de expectativa, cheio de ansiedade e curiosidade, ele ficou ali, parado. Viu como a mãe espreitava ao redor, viu-a se encolher e ele mesmo se encolheu, pronto para sair aos saltos de volta à mata fechada. Então, a mãe se acalmou de novo, e quando um minuto se passou, ela ficou feliz. Ela abaixou o pescoço, estendeu-o, olhou adiante satisfeita e gritou:
— Pode vir!
Bambi saiu em disparada. Uma alegria gigantesca tomou-o com uma força tão fascinante que esqueceu de imediato seu temor. Na mata fechada ele vira apenas a copa verde das árvores sobre si e, além disso, somente às vezes, em pequenos vislumbres, salpicos azuis espalhados. Agora ele via o céu azul inteiro, alto e amplo, e aquilo o alegrou sem que ele soubesse o motivo. Do sol, ele conhecera na floresta apenas raios largos e intermitentes ou a suave chuva de luz que se refletia dourada entre os galhos. De repente, estava parado sob a força quente e ofuscante, cujo domínio absoluto o banhava, estava parado no meio do calor abençoado que lhe fazia fechar os olhos e abrir o coração. Bambi estava inebriado, totalmente fora de si, simplesmente encantado. Com desajeito, saltou alto três, quatro, cinco vezes ali mesmo onde estava. Não conseguia evitar, precisava saltar.
Sentiu desejo de pular bem alto. Suas pernas jovens estenderam-se com tamanha força, sua respiração era tão profunda e fácil, e ele bebia a respiração, bebia todo o cheiro da campina com uma empolgação tão impetuosa que precisava mesmo saltar. Bambi era um filhote. Se fosse uma criança humana, teria gritado de alegria. Mas era um filho de corça, e corças não gritam, ao menos não como as crianças humanas fazem. Então, ele gritou de alegria do seu jeito. Com as pernas, com o corpo todo, que girava no ar. Sua mãe ficou por perto e se alegrou. Viu que Bambi estava encantado. Viu que ele se lançava no ar, caía desajeitado no mesmo lugar, olhava perplexo e inebriado e, no momento seguinte, se lançava de novo no ar, várias e várias vezes. Ela compreendeu que Bambi conhecia apenas os estreitos caminhos das corças da floresta, se acostumara, nos poucos dias de sua existência, apenas ao confinamento da mata fechada e que, por isso, não saía do lugar, pois não entendia como correr livremente pela campina aberta. Ela se abaixou sobre as patas dianteiras estendidas, riu de Bambi por um segundo, deu um salto e correu em círculos de forma que os talos altos de mato farfalharam. Bambi assustou-se e permaneceu imóvel. Era um sinal de que devia voltar à mata fechada? Não se preocupe comigo, dissera a mãe, nem com o que vir e ouvir; apenas siga em frente, o mais rápido possível! Ele quis dar meia-volta e fugir, como lhe fora ordenado. Então, a mãe de repente chegou a galope em meio a um chiado maravilhoso, parou a dois passos dele, inclinou-se rindo e gritou:
— Venha comigo!
E, num repente, ela desapareceu. Bambi ficou embasbacado. O que era aquilo? Era mesmo sua mãe? E então ela voltou, tão rápida que o deixou zonzo, empurrou-o no flanco com o nariz e disse, apressada:
— Venha me pegar! – E fugiu de novo. Bambi partiu atrás dela. Alguns passos. Mas logo os passos se transformaram em saltinhos. Parecia que estava voando, avançando sem esforço. Havia um espaço a cada passo, espaço a cada pulo, espaço, espaço. Bambi ficou feliz além da conta. O mato farfalhava em suas orelhas, e era lindo, tão macio, suave como seda quando passava por ele. Ele corria em círculos, lançava-se para lá e para cá e descrevia mais um círculo, voltava a se lançar e continuava a correr. A mãe parou um pouco, tomou fôlego e se virou para o lado em que Bambi saltitava. Ele estava a toda velocidade.
De repente, a corrida terminou. Ele parou, foi até a mãe com passinhos elegantes e olhou para ela com alegria. Então, caminharam lado a lado, cheios de contentamento. Desde que havia saído para a campina, Bambi vira o céu, o sol e a vastidão verde apenas com o corpo, o céu apenas com o olhar ofuscado e inebriado, o sol com as costas banhadas de forma benfazeja e com a respiração cada vez mais forte. Agora desfrutava com os olhos, arrebatado pelas novas maravilhas a cada passo, o esplendor da campina. Não havia nenhum pedacinho de chão visível, como lá dentro, na floresta. Os talos cobriam cada palmo de chão, tocando-se e balançando na mais pura resplandescência, curvando-se suavemente para o lado a cada passo e se erguendo em seguida como se nada houvesse passado. O campo verde era estrelado com margaridas brancas, com gordos botões violetas e vermelhos dos trevos em flor e com as flores pomposas de um dourado brilhante que o dente-de-leão elevava.
— Olha só, mãe – gritou Bambi —, uma flor está voando ali.
— Não é uma flor – disse a mãe —, é uma borboleta.
Bambi olhou embevecido a borboleta que se soltou com infinita delicadeza de um talo e pairou em voo vacilante. Então, Bambi viu que muitas daquelas tais borboletas voavam sobre a campina, aparentemente apressadas e, ainda assim, lentas, tremelicando para cima e para baixo, uma brincadeira que o entusiasmou. Pareciam realmente flores voadoras, flores engraçadas que não queriam ficar paradas em seu caule e tinham se afastado para dançar um pouquinho. Ou flores que pousavam com o pôr do sol, mas ainda não tinham um lugar e precisam buscar um, desciam e desapareciam, como se afundassem em algum lugar, mas logo voltavam a se erguer, ora apenas um pouco, ora mais alto para continuar sua busca, sem parar, pois os melhores lugares já estavam ocupados.
Bambi olhava para todas. Adoraria ver uma delas de perto, adoraria ficar frente a frente com uma delas, mas não conseguia. Elas pairavam sem parar de um lado para o outro. Ele ficou totalmente confuso.
Ele se deliciou quando olhou de novo para o chão, todas aquelas milhares de vidas ágeis que rastejavam embaixo dos cascos. Saltavam e brotavam para todos os lados, surgiam como um tumulto e uma confusão e voltavam a afundar no próximo segundo no solo verde de onde haviam subido.
— O que é isso, mãe? – perguntou.
— São os pequenos – respondeu a mãe.
— Olha só – gritou Bambi —, um pedacinho de mato está pulando aqui. Não… como pula alto!
— Não é mato – explicou a mãe —, é um bom gafanhoto.
— Por que ele pula assim?
— Porque chegamos aqui – comentou a mãe —, e ele tem medo.
— Ah! – Bambi voltou-se ao gafanhoto, que estava sentado sobre o disco branco de uma margarida. — Ah – disse Bambi suavemente. — O senhor não precisa ter medo, claro que não vamos fazer nada.
— Eu não tenho medo – retrucou o gafanhoto com voz trêmula. — Só me assustei em um primeiro momento, pois eu estava falando com a minha mulher.
— Desculpe – disse Bambi, dócil. — Nós perturbamos o senhor.
— Não tem problema – rascou o gafanhoto. — Como são vocês, não tem problema. Mas nunca se sabe quem vem, e é preciso estar atento.
— Essa é a primeira vez na minha vida que venho até a campina – explicou Bambi. — A mãe me…
O gafanhoto ergueu-se com a cabeça estendida de um jeito petulante, fez uma expressão séria e murmurou:
— Não quero saber. Não tenho tempo de bater papo com você, preciso procurar minha mulher. Pula! – E assim ele se foi.
— Pula – disse Bambi, perplexo, e observou maravilhado o pulo alto com que ele desapareceu.
Bambi correu até a mãe:
— Ei… eu falei com ele!
— Com quem? – perguntou a mãe.
— Ora, com o gafanhoto – explicou Bambi —, eu falei com ele. Ele foi tão gentil comigo. E eu gosto muito dele. Ele é tão verde, e na ponta ele é tão transparente como nenhuma folha pode ser, nem a mais fina.
— São as asas.
— É? – Bambi continuou. — E ele tem aquela cara séria, cheia de pensamentos. Mas, apesar disso, ele foi muito gentil comigo. E como consegue pular! Deve ser pesado de montão. Pula!, ele fala e pula tão alto que não dá mais para ver.
Ele continuou a falar. A conversa com o gafanhoto deixou Bambi agitado e um pouco cansado, pois era a primeira vez que ele falava com alguém estranho. Ele sentiu fome e se encostou em sua mãe para se alimentar.
Quando voltou a se acalmar e sonhou acordado por um tempinho, na pequena e doce embriaguez que o cercava todas as vezes que era amamentado pela mãe, observou na confusão dos talos do mato uma flor clara que se movimentava. Bambi olhou com mais atenção. Não, não era uma flor, era uma borboleta. Bambi aproximou-se com cuidado.
A borboleta pendia preguiçosa em um talo e movia devagar suas asas.
— Por favor, fique no lugar! – Bambi pediu para ela.
— Por que tenho que ficar no lugar? Sou uma borboleta – respondeu o bichinho, surpreso.
— Ah, fique apenas um pouquinho no lugar – pediu Bambi —, faz tempo que estou querendo ver a senhora de perto. Faça esse favorzinho.
— Que seja – disse a borboleta —, mas só um pouco.
Bambi parou diante dela.
— Como a senhora é bonita – vozeou ele, encantado —, que maravilhosa! Como uma flor!
— Quê? – A borboleta bateu as asas. — Como uma flor? Ora, em meus círculos todos falam que somos mais bonitas que as flores.
Bambi ficou perplexo.
— É mesmo – gaguejou —, muito mais bonita… me perdoe… eu só quis dizer…
— Para mim tanto faz o que você quis dizer – retrucou a borboleta. Ela curvou seu corpo estreito de um jeito afetado e brincou vaidosa com as antenas delicadas.
Bambi observou-a, encantado.
— Como a senhora é delicada – disse ele —, fina e delicada! E que magníficas essas asas brancas!
A borboleta estendeu bem as asas, em seguida as ergueu de um jeito que ficaram bem juntas, parecendo uma vela de barco estendida.
— Ah – gritou Bambi —, agora eu entendo por que a senhora é mais bonita que as flores. Além disso, a senhora pode voar, e as flores não podem. Porque elas crescem presas no caule, é por isso.
A borboleta ergueu-se.
— Chega – disse ela. — Eu posso voar! – Ela alçou voo tão levemente que mal era possível perceber e entender. Suas asas brancas moveram-se com suavidade, graciosas, então ela pairou no ar ensolarado. — Só fiquei parada tanto tempo por você – disse ela e balançou para cima e para baixo diante de Bambi —, mas agora eu vou embora.
Assim era a campina.
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Como ele recebeu o nome “Sweeney”, não sabemos dizer, mas este era seu nome, como era possível ver em letras garrafais e amareladas bem acima da vitrine de seu estabelecimento por qualquer pessoa que decidisse olhar para lá.
Os barbeiros da Fleet Street daquela época ainda não estavam na moda. Não sonhavam em ser chamados de artistas, tampouco em prosperar, assim como não costumavam, como fazem agora, matar os mais belos ursos. Ainda assim, as pessoas tinham cabelos na cabeça da mesma forma como agora, sem usar aqueles produtos gordurosos. Além disso, Sweeney Todd, como seus amigos naqueles tempos tão antigos, não via a menor necessidade em ter manequins de cera com perucas em sua vitrine. Não havia nenhuma jovem abatida meneando a cabeça para que uma profusão de madeixas ruivas pudesse descer pelo seu pescoço, tampouco grandes conquistadores e homens do Estado ridicularizavam-se com ruge nas faces, um pouco de pólvora espalhada para servir de barba e uns fios duros formando as sobrancelhas.
Não. Sweeney Todd era um barbeiro dos antigos, e ele nunca pensou que deveria se gabar à custa de circunstâncias extrínsecas. Ainda que vivesse no palácio de Henrique VIII, teria sido para ele o mesmo que viver em um canil. Era difícil acreditar que o ser humano fosse tão imaturo a ponto de pagar seis centavos a mais para fazer barba e cabelo em qualquer lugar que fosse.
Um cabo comprido pintado de branco, com uma listra vermelha espiralada ao longo dele, avançava em direção à rua, preso à porta da barbearia. E na vitrine via-se a seguinte parelha:
Barba feita por um centavo
Preço certo, sem conchavo.
Não citamos essas frases como amostra da poesia da época — elas podem ter sido criadas por algum jovem estudante de direito —, mas ainda que deixassem a desejar no traquejo poético, compensavam muito no modo claro e preciso com que expunham seu sentido.
O barbeiro em si era um sujeito comprido e desconjuntado, com uma boca enorme, e mãos e pés tão imensos que o faziam, à sua maneira, muito curioso. O mais incrível, dada à sua área de atuação, eram seus cabelos. Não sabemos com o que compará-los: provavelmente próximo do que se pode imaginar da aparência de uma cerca-viva cheia de fios entrelaçados. Na verdade, era uma incrível cabeleira; e como Sweeney Todd mantinha todos os pentes dentro dela — e alguns diziam que também as tesouras —, quando ele punha a cabeça para fora da porta para ver como estava o tempo, era possível que fosse confundido com algum guerreiro indígena e seu belo cocar.
Era dono de uma risada curta e sem graça, que aparecia nas horas mais inesperadas nas quais ninguém via motivo algum para rir, provocando sustos nas pessoas, principalmente quando estavam sendo barbeadas e Sweeney Todd interrompia a operação abruptamente para se dar a uma daquelas efusões sem controle. Ficava claro que a lembrança de alguma piada muito esquisita e descabida às vezes lhe ocorria, e então ele soltava a risada tal qual a de uma hiena — curta, repentina e aguda —, e logo sumia. As pessoas costumavam olhar para o teto, para o chão e ao redor de onde estivessem para saber da origem daquele som, quase sem acreditar que pudesse ter saído dos lábios de um mortal.
O sr. Todd estreitava um pouco os olhos para aumentar seu charme; e assim acreditamos que, neste momento, o leitor já deve imaginar o indivíduo que desejamos apresentar. Algumas pessoas o consideravam um homem relaxado e inofensivo, sem muito juízo, e às vezes até o julgavam um pouco maluco; mas outras balançavam a cabeça, incrédulas, quando falavam dele. Ademais, não poderiam dizer nada de mau sobre ele, apenas que o consideravam esquisito e, levando em conta que é um crime e uma contravenção ser esquisito neste mundo, não nos surpreende ver que Sweeney Todd não era nem um pouco admirado.
Mas, apesar de tudo isso, ele tinha um negócio próspero e era considerado um homem bem-sucedido e, como diziam na cidade, simpático.
Era tão prático para os estudantes de Temple passar pelo estabelecimento de Sweeney Todd e raspar o queixo que, da noite para o dia, ele passou a administrar um negócio lucrativo, e evidentemente se tornou um homem de bens.
Só havia uma coisa que parecia, de alguma forma, não combinar com a grande prudência do caráter de Sweeney Todd: o fato de ele arrendar uma casa grande, da qual ocupava apenas a loja e o salão, deixando a parte de cima totalmente sem uso e recusando-se com veemência a deixá-la livre, independentemente das condições.
E assim eram as coisas, em 1785 da era Cristã, no que dizia respeito a Sweeney Todd.
O dia estava chegando ao fim. Uma chuva fina caía, deixando poucos pedestres nas ruas. Sweeney Todd estava dentro da barbearia, sentado, observando com atenção o rosto de um garoto que se mantinha de pé diante dele, porém retraído e trêmulo.
— Você deve se lembrar — disse Sweeney Todd, fazendo uma careta horrorosa ao falar —, deve se lembrar, Tobias Ragg, que agora é meu aprendiz, que de mim recebe casa, comida e roupa lavada, com a exceção de que não dormirá aqui, fará suas refeições em casa e que sua mãe, a sra. Ragg, lavará suas roupas, o que pode muito bem fazer, já que é lavadeira em Temple, recebendo muito dinheiro por isso. Quanto à moradia, vai ficar aqui, como sabe, muito confortável na barbearia durante todo o dia. Não se sente um cachorrinho feliz?
— Sim, senhor — disse o garoto, com timidez.
— Aprenderá uma profissão de valor, tão boa quanto o direito, o qual sua mãe me disse que queria que você seguisse, o que não foi possível devido a uma leve incapacidade intelectual de sua parte. Agora, Tobias, preste atenção, ouça bem e guarde o que vou dizer.
— Sim, senhor.
— Corto seu pescoço de uma orelha a outra se você repetir uma palavra que seja do que acontecer aqui, ou se ousar fazer qualquer suposição ou tirar qualquer conclusão de alguma coisa que possa ver e escutar, ou até imaginar ver e escutar. Você entendeu? Corto seu pescoço de uma orelha a outra... entendeu?
— Sim, senhor, não vou dizer nada. Que eu seja transformado em tortas de vitela da Lovett’s, em Bell Yard, senhor, se eu disser qualquer coisa que seja.
Sweeney Todd se levantou da cadeira; e abrindo a boca enorme, olhou para o garoto por um ou dois minutos em silêncio, como se pretendesse devorá-lo todo, mas ainda não tivesse decidido bem por onde começar.
— Muito bem — disse ele, por fim. — Estou satisfeito, assim, bem satisfeito; e preste atenção: a barbearia, e só ela, é onde você deve ficar.
— Sim, senhor.
— E se algum cliente lhe der um centavo, pode ficar com ele, pois com uma quantidade boa deles, será rico; mas cuido deles para você, e quando os quiser, deixarei que os pegue. Saia agora, vá ver que horas marca o relógio da St. Dunstan.
Havia uma pequena multidão reunida na frente da igreja, pois as estátuas estavam prestes a bater quinze para as sete; e no meio da multidão, estava um homem que olhava para elas com a mesma curiosidade de todos.
— Agora é hora! — disse ele. — Eles vão começar. Puxa! Que engenhoso. Veja o homem erguendo seu bastão, e vai dar com ele no velho sino.
Os três quartos de hora foram marcados pelas estátuas, e as pessoas que tinham se aglomerado para ver, muitas das quais viam a mesma coisa todos os dias há anos, se afastaram, com exceção do homem que parecia muito interessado.
Ele ficou e, deitado a seus pés, estava um cachorro com ar nobre, que também observava as estátuas; e vendo a atenção com que seu dono olhava, dedicou-se a demonstrar o maior interesse possível.
— O que você acha disso, Hector? — perguntou o homem.
O cachorro soltou um gemido baixo e curto, e seu dono continuou:
— Tem uma barbearia do outro lado. Talvez devesse dar uma passada lá antes de seguir meu caminho, já que preciso visitar as moças e dar-lhes a triste notícia do falecimento do pobre Mark Ingestrie, e só Deus sabe como Johanna vai reagir. Acredito que vou reconhecê-la pela descrição que o coitado fez dela. Eu me entristeço agora, lembrando de como ele costumava falar dela nas noites longas de vigília, no silêncio, quando não havia a menor brisa para soprar seus cabelos. Chegava a vê-la às vezes, em pensamento, pois ele me falava de seus olhos suaves e radiantes, dos lábios delicados formando um beicinho e das covinhas próximo da boca. Bem, não adianta se lamentar; ele morreu afogado, coitado, e água salgada cobre o coração mais valente que já existiu. Mas sua amada Johanna receberá o colar de pérolas mesmo assim; e se ela não pode ser a esposa de Mark Ingestrie neste mundo, será rica e feliz enquanto nele permanecer. Ou tão feliz quanto for possível, pois certamente deverá ansiar por encontrar-se com ele no céu, onde não existem ventos e tempestades. Assim sendo, vou me barbear de uma vez.
Ele atravessou a rua na direção da barbearia de Sweeney Todd e, descendo os degraus da entrada, se viu cara a cara com o estranho barbeiro.
O cachorro rosnou baixo e farejou o ar.
— Minha nossa, Hector — disse seu dono —, o que há? Acalme-se, acalme-se.
— Morro de medo de cachorros — disse Sweeney Todd. — O senhor se importaria de deixá-lo aqui fora à sua espera, se não for atrapalhar? Veja como ele está, vai me atacar!
— Nesse caso, o senhor será a primeira pessoa a quem ele ataca sem ser provocado — disse o homem —, mas acho que ele não gosta de sua aparência, e devo confessar que isso não me surpreende muito. Já vi uns sujeitos bem esquisitos na vida, mas juro que nunca vi uma figura como o senhor. E que diabo de barulho foi esse?
— Fui eu — disse Sweeney Todd. — Só dei uma risada.
— Só deu uma risada! Chama isso de risada? Acho que o senhor a contraiu de alguém que morreu do mesmo problema. Se é seu jeito de rir, imploro que não ria mais assim.
— Segure o cachorro! Segure! Não quero cachorros correndo no meu quintal.
— Aqui, Hector, aqui! — gritou seu dono. — Pra fora!
Muito contrariado, o cachorro saiu da barbearia e se abaixou perto da porta, que o barbeiro tomou o cuidado de fechar, dizendo algo sobre as rajadas de vento. E então, olhando para o aprendiz encolhido num canto, disse:
— Tobias, meu rapaz, vá à Leadenhall Street, e traga um saco pequeno de biscoitos grandes da casa do sr. Peterson; diga que são para mim. Bem, senhor, creio que queira fazer a barba, e que bom ter vindo aqui. Eu não deveria dizer, mas não há barbearia na cidade de Londres onde façam barbas tão bem quanto eu.
— Pois direi uma coisa, grande senhor barbeiro: se rir de novo desse jeito, vou me levantar e ir embora. Não gosto daquela risada, e não falarei outra vez.
— Muito bem — disse Sweeney Todd enquanto preparava a espuma. — Quem é o senhor? De onde veio, para onde vai?
— Está fria, é o que posso dizer. Inferno! Por que está passando o pincel de barba na minha boca? Não dê risada, pelo amor de Deus! E já que gosta tanto de fazer perguntas, responda uma para mim.
— Ah, sim, claro. O que quer saber, senhor?
— Conhece um homem chamado sr. Oakley, que mora em algum lugar em Londres e fabrica óculos?
— Sim, claro que conheço. John Oakley, o oculista da Fore Street. Ele tem uma filha chamada Johanna, a quem os garotos chamam de “Flor da Fore Street”.
— Ah, coitadinha! Eles dizem isso? Mas que inferno! De que está rindo agora? O que pretende com isso?
— O senhor não disse “coitadinha”? Vire um pouco a cabeça para o lado, assim. O senhor já viu o mar?
— Sim, vi, e recentemente subi o rio voltando da Índia.
— Não me diga! Onde pode estar meu afiador? Estava aqui agora mesmo, devo tê-lo deixado em algum lugar. Estranho não encontrá-lo! Muito esquisito, onde foi parar? Ah, eu me lembro, eu o levei ao salão. Fique sentado, senhor, volto em um instante. A propósito, pode se distrair com o jornal.
Sweeney Todd entrou na sala dos fundos e fechou a porta. Ouviu-se um barulho esquisito de repente, algo parecido com uma movimentação apressada, seguido de uma batida forte. Assim que Sweeney Todd retornou, olhou para a cadeira vazia onde seu cliente havia se sentado antes, mas ele não estava mais ali e não deixou outro traço de sua presença além de seu chapéu, que Sweeney Todd pegou no mesmo instante e jogou dentro de um armário que ficava em um canto da barbearia.
— O que foi isso? — perguntou ele. — O que foi? Pensei ter ouvido um barulho.
A porta se abriu devagar, e Tobias apareceu dizendo:
— Com licença, senhor, eu me esqueci do dinheiro, e vim correndo de volta do pátio da igreja St. Paul.
Com duas passadas, Todd se aproximou dele, segurando-o pelo braço. Arrastou-o para o canto mais distante da loja, onde permaneceu de pé com os olhos arregalados, sustentando uma expressão tão demoníaca que o garoto se sentiu aterrorizado.
— Fale! — gritou Todd. — Fale logo! E fale a verdade, ou sua hora terá chegado! Quanto tempo você passou espiando pela porta antes de entrar?
— Espiando, senhor?
— Sim, espiando. Não repita minhas palavras, só me responda de uma vez, que vai ser melhor para você, no fim das contas.
— Eu não estava espiando, senhor, de jeito nenhum.
Sweeney Todd respirou fundo e então, com um jeito esquisito e uma voz meio estridente, intencionalmente jocosa, disse:
— Bem, muito bem, bem, bem. E se você tiver espiado? Não importa. Eu só queria saber, só isso. Foi uma boa piada, não foi? Bem engraçada, ainda que meio esquisita, não é? Por que não ri, cachorro? Vamos, não faz mal. Conte-me o que pensou daquilo de uma vez, e ficaremos satisfeitos com o assunto... muito satisfeitos.
— Não sei do que está falando, senhor — disse o garoto, que estava quase tão assustado com a risadinha do sr. Todd quanto com sua raiva. — Não sei a que se refere, senhor. Só voltei porque não tinha dinheiro para pagar pelos biscoitos na loja dos Peterson.
— Não me refiro a nadinha — disse Todd, virando-se de costas de repente. — O que é esse arranhar na porta?
Tobias abriu a porta da barbearia, e ali estava o cachorro, que olhou com olhar pidão ao redor, e deu um rosnado que muito assustou o barbeiro.
— É o cachorro daquele cavalheiro, senhor — disse Tobias. — O cachorro do cavalheiro que estava observando o relógio da igreja de St. Dunstan, e que entrou aqui para fazer a barba. Engraçado, não é mesmo, senhor, que o cachorro não tenha ido embora com seu dono?
— Por que não ri, se é engraçado? Coloque o cachorro para fora, Tobias. Não quero cães aqui dentro. Detesto vê-los. Coloque-o para fora... pra fora.
— Eu faria isso, senhor, em um instante, mas acredito que ele não me deixaria, não sei por quê. Veja só, senhor... veja o que ele está aprontando agora! O senhor já viu um camarada tão violento assim? Minha nossa, ele vai derrubar a porta do armário.
— Faça com que ele pare... faça com que pare! Este animal está possuído. Mandei fazer com que ele pare!
O cachorro certamente abriria a porta, mas Sweeney Todd se apressou a impedi-lo. Logo se arrependeu, porém, do ato perigoso, já que o cachorro mordiscou sua perna e arrancou do barbeiro um uivo alto de dor que o fez recuar na hora, deixando o animal à vontade para fazer o que bem queria. E o que ele quis foi abrir a porta do armário, pegar o chapéu que Sweeney Todd havia jogado ali dentro, e sair da barbearia com ele entre os dentes de modo triunfal.
— O animal está possuído — murmurou Todd —, está maluco. Tobias, você disse ter visto o homem que é o dono dessa peste olhando para a igreja de St. Dunstan.
— Sim, senhor, eu o vi ali. Se o senhor se recorda, mandou-me ver as horas, e as estátuas iam marcar quinze para as sete. E antes de voltar, eu o ouvi dizer que Mark Ingestrie estava morto, e que Johanna deveria receber o colar de pérolas. Em seguida, entrei e então, se o senhor se recorda, ele entrou. O mais esquisito, senhor, foi ele não ter levado o cachorro consigo, sabe por quê?
— Por que, o quê?! — gritou Todd.
— Porque as pessoas normalmente levam seus cachorros com elas, sabe, senhor, e pode ser que eu seja transformado em uma das tortas da Lovett’s.
— Silêncio! Alguém está chegando. É o velho sr. Grant, da Faculdade de Direito. Como tem passado, sr. Grant? Fico feliz por vê-lo tão disposto, senhor. Faz bem para o coração ver um cavalheiro de sua idade aparentemente tão bem e saudável. Sente-se, senhor, um pouquinho para cá, por favor. Creio que tenha vindo se barbear?
— Sim, Todd, sim. Alguma novidade?
— Não, senhor, nada novo. Tudo está muito calmo, exceto o vento forte. Dizem que o vento levou o chapéu do rei ontem, senhor, e que ele pegou emprestado o de Lorde North. Os negócios estão fracos também, senhor. Acredito que as pessoas não saem para se assear em dias de chuva. Não recebemos ninguém na barbearia há uma hora e meia.
— Nossa! — disse Tobias. — Olha, o senhor se esqueceu do cavalheiro do mar com o cachorro, sabe?
— Ah, sim, é verdade — disse Todd. — Ele se foi e eu acredito tê-lo visto entrar em uma confusão na esquina do mercado.
— Fico surpreso por não tê-lo encontrado, senhor — disse Tobias —, porque eu vim de lá e foi muito estranho o fato de ele ter deixado o cachorro para trás.
— Sim, muito — disse Todd. — Pode nos dar licença por um minuto, sr. Grant? Tobias, meu rapaz, quero que você me dê uma mão no salão.
Sem qualquer desconfiança, Tobias acompanhou Todd até o salão. Quando chegaram ali e a porta foi fechada, o barbeiro pulou em cima dele como um tigre raivoso e bateu sua cabeça na parede tantas vezes que o sr. Grant deve ter pensado que algum carpinteiro estava martelando a madeira. Em seguida, arrancou um punhado de cabelos do garoto. Virou-o e o chutou tão forte, que o rapaz foi jogado em um canto da sala. E então, sem nada dizer, o barbeiro saiu e voltou para onde estava seu cliente, mas trancou a porta do salão por fora, deixando Tobias digerindo a reprimenda que havia ganhado do modo que mais lhe fosse conveniente.
Quando voltou para onde estava o sr. Grant, desculpou-se por deixá-lo esperando e disse:
— Precisei, senhor, ensinar algumas coisinhas sobre o trabalho a meu novo aprendiz. E o deixei estudando agora. Nada como ensinar os jovens de uma vez.
— Ah! — disse o sr. Grant, suspirando. — Sei como é deixar os jovens se rebelarem, pois apesar de não ter esposa nem filhos, cuidei do filho de uma irmã. Um rapaz bonito, intenso e irresponsável, muito parecido comigo. Tentei fazer dele um advogado, mas não foi possível; e agora faz mais de dois anos que ele me deixou; mas mesmo assim, Mark tem boas qualidades.
— Mark, senhor? O senhor disse Mark?
— Sim, é o nome dele, Mark Ingestrie. Só Deus sabe o que aconteceu com ele.
— Oh! — disse Sweeney Todd; e seguiu barbeando o queixo do sr. Grant.